José Alberto Mar. Com tecnologia do Blogger.

26.12.23

A MARCA DE VÊNUS

 "Sr. da Pedra", V. N. Gaia-Porto. Foto J.A.M.

 

Entrego à noite o meu corpo, só.
Entre vários impossíveis deus espera
a morte global, estátuas em silêncio
os olhos
entre dois cometas
atingidos em plena pose.
 
Falo em deus como posso dizer muros e
muros transparentes ou o interior das casas
por detrás das cortinas.
Belas mulheres varrendo o ar labiríntico
com a nudez das coxas aplainadas no desejo.
Pedaços da beleza
fantasias madrugadoras do futuro
vindo até nós.
 
Entre nós há um duelo cego
tocado por enormes encantos
e grandiosos silêncios.
É soberbo e dói cantar o diário infortúnio
as distâncias entre as pessoas
O fundo incompleto onde se morre
tão devagar.
 
Também a morte reclama a sua beleza
e nessa doação é preciso não sermos imaginativos
rente à superfície das coisas
estarmos próximos às árvores mutantes
nas estações, levantadas do chão
e libertas pelas suas próprias aceitações
de serem folhas, frutos e sombra
enquanto a demência do espírito ousa
a delicadeza de um pretexto
para a meditação.
                              (Enquanto o corpo está só
as florestas evoluem os símbolos, inscritos
dedo a dedo na pele dos vivos
adormecidos mortos).
 
Mas, não há maior ciência que a dúvida.
Entre tantas imagens já pensei ser grande
mergulhado em mim o talismã do poder
nos olhos, na voz, o timbre preciso
para as montanhas se moverem
em direção ao poema.
 
Como dizer por um toque simples
as raízes da criação submersas em ondas
passageiras em mim e logo são outros
a beberem essa feroz concepção
nas veias interiores abertas
à desconhecida inteligência, finíssima matéria
implacável nos seus encontros.
 
A esse deus abandonado aos limites dos homens
peço o Silêncio a dívida que dorme
sobre a minha carne deslumbrada libertina
pois aí, também eu sou muitos
e sofro a divisão das idades baralhadas
o lento hipnotismo destes momentos
em que nenhuma mão se encontra arrumada
no seu próprio ofício de ser
só uma mão. De um corpo acordado vivo
na simples quietude da beleza.
 
 
 
 
 
( J. A. M. - in, Triângulo de Ouro)
 
 
 
 
 
 
 
 

22.12.23

" to lean out of the boat. To be human." ( Seth Godin)

Pintura. J. A. M.

 

VOZES COMUNICANTES


Às pessoas nómadas nos corpos e nas almas
um beijo indelével no rosto ausente
intervalo onde tocamos juntos
a íntima unidade no coração das coisas.
 
Sobre as infindáveis ciências dos homens
pousamos a luz urgente de outros olhos
desce sobre nós
a lucidez do Universo vivo.



J. A. M. ~ in, " O Triângulo de Ouro" (1988)
 
 

10.12.23

Sinais

Farol diurno ( pintura) . J. A. M.

 

Colher escolher à tona o desejo mais fechado

entrega-lo aos olhos e dizer: como acontecesse o coração

no seu exato pensamento. Onde felizmente

há música na geometria dos astros

e um início de ouro a cada momento.


(J. A. M.)

 

5.12.23

Há coisas do diabo. Já fui ao Paraíso.


Escultura-Máscara. J. A. M.

 

Há coisas do diabo. Já fui ao paraíso.
E voltei.
Estava já quase acordado no meu quarto do Hotel Europa, quando a Ana e a Joyce abriram a porta em leque cheias de sorrisos floridos e me convidaram para dar um passeio pelas franjas de Gaibu. Lá me levantei um tanto ou quanto aturdido pelas caipirinhas da noitada anterior, mas depois de beber o coco fresco que me atiraram de chofre fiquei logo fino, vesti a t-shirt e os calções de sempre e lá fomos, que nem 1 trio harmonia pelo dia adiante.
Passámos pelas ruínas do Forte São Francisco Xavier, eram pedras amontoadas por ali pelas leis do acaso e com alguma parcimónia sobrava a placa, livrei-me das alpercatas (1) na linda praia de Calhetas, onde vi ondas debruçadas sobre a própria espuma fresca nos meus pés, depois de serem verde-esmeralda e azul-turquesa, e também vi uma foto do jovem Eusébio no bar lá do sítio, ao lado de N ilustres que por ali tinham po(u)sado algures, ao longo dos seus destinos.
Depois continuámos a caminhar por entre árvores (2), plantas e flores de muitas cores e aromas vários, até que a incerta altura num morro inesperado e cheio de um céu azulmuitoazul, vi uma tabuleta tosca de madeira com a palavra: “PARAÍSO”.
As minhas companheiras apanharam o meu ar aparvalhado e eu apanhei-as a sorrirem apenas cúmplices.
 
O que havia a dizer?
 
Lá descemos entretidos com os pés de cada um, a saltitarem de pedra em pedra, até desembocarmos numa espécie de praia com a água muito transparente e a areia prateada pelo pôr-do-sol que se diluía pelas águas até ao esquecimento.
Sentámo-nos a olhar e a escutar o mundo à volta através daquele ponto de vista, dentro do ponto de vista de cada um e os três juntos com as 6 vistas desarmadas, despidas, deliradas.
Já não sei, e pouco me importa, o tempo (o tempo?...) que poisámos ali, a respirar aquele lugar tão belo e simples irrealmente em tudo. Lembro-me vagamente que as palavras eram coisas a mais e a ninguém lhe passou pela cabeça falar de tal assunto.
 
Quando regressámos a Gaibu, numa camioneta que ainda circulava, já lá estava instalada uma noite claramente aberta à nossa festa.
 
 
 

(1) Sandálias de couro.
(2) Manacás, mulungas, ipês, com as suas flores de ouro, algumas das muitas árvores ainda existentes e caraterísticas da Mata Atlântica no local.
 

 
(Gaibu. Estado de Pernambuco. Brasil)

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in, Livro de Contos : O OURO BREVE DOS DIAS

J. A. M.