José Alberto Mar. Com tecnologia do Blogger.

26.12.23

A MARCA DE VÊNUS

 "Sr. da Pedra", V. N. Gaia-Porto. Foto J.A.M.

 

Entrego à noite o meu corpo, só.
Entre vários impossíveis deus espera
a morte global, estátuas em silêncio
os olhos
entre dois cometas
atingidos em plena pose.
 
Falo em deus como posso dizer muros e
muros transparentes ou o interior das casas
por detrás das cortinas.
Belas mulheres varrendo o ar labiríntico
com a nudez das coxas aplainadas no desejo.
Pedaços da beleza
fantasias madrugadoras do futuro
vindo até nós.
 
Entre nós há um duelo cego
tocado por enormes encantos
e grandiosos silêncios.
É soberbo e dói cantar o diário infortúnio
as distâncias entre as pessoas
O fundo incompleto onde se morre
tão devagar.
 
Também a morte reclama a sua beleza
e nessa doação é preciso não sermos imaginativos
rente à superfície das coisas
estarmos próximos às árvores mutantes
nas estações, levantadas do chão
e libertas pelas suas próprias aceitações
de serem folhas, frutos e sombra
enquanto a demência do espírito ousa
a delicadeza de um pretexto
para a meditação.
                              (Enquanto o corpo está só
as florestas evoluem os símbolos, inscritos
dedo a dedo na pele dos vivos
adormecidos mortos).
 
Mas, não há maior ciência que a dúvida.
Entre tantas imagens já pensei ser grande
mergulhado em mim o talismã do poder
nos olhos, na voz, o timbre preciso
para as montanhas se moverem
em direção ao poema.
 
Como dizer por um toque simples
as raízes da criação submersas em ondas
passageiras em mim e logo são outros
a beberem essa feroz concepção
nas veias interiores abertas
à desconhecida inteligência, finíssima matéria
implacável nos seus encontros.
 
A esse deus abandonado aos limites dos homens
peço o Silêncio a dívida que dorme
sobre a minha carne deslumbrada libertina
pois aí, também eu sou muitos
e sofro a divisão das idades baralhadas
o lento hipnotismo destes momentos
em que nenhuma mão se encontra arrumada
no seu próprio ofício de ser
só uma mão. De um corpo acordado vivo
na simples quietude da beleza.
 
 
 
 
 
( J. A. M. - in, Triângulo de Ouro)
 
 
 
 
 
 
 
 

22.12.23

" to lean out of the boat. To be human." ( Seth Godin)

Pintura. J. A. M.

 

VOZES COMUNICANTES


Às pessoas nómadas nos corpos e nas almas
um beijo indelével no rosto ausente
intervalo onde tocamos juntos
a íntima unidade no coração das coisas.
 
Sobre as infindáveis ciências dos homens
pousamos a luz urgente de outros olhos
desce sobre nós
a lucidez do Universo vivo.



J. A. M. ~ in, " O Triângulo de Ouro" (1988)
 
 

10.12.23

Sinais

Farol diurno ( pintura) . J. A. M.

 

Colher escolher à tona o desejo mais fechado

entrega-lo aos olhos e dizer: como acontecesse o coração

no seu exato pensamento. Onde felizmente

há música na geometria dos astros

e um início de ouro a cada momento.


(J. A. M.)

 

5.12.23

Há coisas do diabo. Já fui ao Paraíso.


Escultura-Máscara. J. A. M.

 

Há coisas do diabo. Já fui ao paraíso.
E voltei.
Estava já quase acordado no meu quarto do Hotel Europa, quando a Ana e a Joyce abriram a porta em leque cheias de sorrisos floridos e me convidaram para dar um passeio pelas franjas de Gaibu. Lá me levantei um tanto ou quanto aturdido pelas caipirinhas da noitada anterior, mas depois de beber o coco fresco que me atiraram de chofre fiquei logo fino, vesti a t-shirt e os calções de sempre e lá fomos, que nem 1 trio harmonia pelo dia adiante.
Passámos pelas ruínas do Forte São Francisco Xavier, eram pedras amontoadas por ali pelas leis do acaso e com alguma parcimónia sobrava a placa, livrei-me das alpercatas (1) na linda praia de Calhetas, onde vi ondas debruçadas sobre a própria espuma fresca nos meus pés, depois de serem verde-esmeralda e azul-turquesa, e também vi uma foto do jovem Eusébio no bar lá do sítio, ao lado de N ilustres que por ali tinham po(u)sado algures, ao longo dos seus destinos.
Depois continuámos a caminhar por entre árvores (2), plantas e flores de muitas cores e aromas vários, até que a incerta altura num morro inesperado e cheio de um céu azulmuitoazul, vi uma tabuleta tosca de madeira com a palavra: “PARAÍSO”.
As minhas companheiras apanharam o meu ar aparvalhado e eu apanhei-as a sorrirem apenas cúmplices.
 
O que havia a dizer?
 
Lá descemos entretidos com os pés de cada um, a saltitarem de pedra em pedra, até desembocarmos numa espécie de praia com a água muito transparente e a areia prateada pelo pôr-do-sol que se diluía pelas águas até ao esquecimento.
Sentámo-nos a olhar e a escutar o mundo à volta através daquele ponto de vista, dentro do ponto de vista de cada um e os três juntos com as 6 vistas desarmadas, despidas, deliradas.
Já não sei, e pouco me importa, o tempo (o tempo?...) que poisámos ali, a respirar aquele lugar tão belo e simples irrealmente em tudo. Lembro-me vagamente que as palavras eram coisas a mais e a ninguém lhe passou pela cabeça falar de tal assunto.
 
Quando regressámos a Gaibu, numa camioneta que ainda circulava, já lá estava instalada uma noite claramente aberta à nossa festa.
 
 
 

(1) Sandálias de couro.
(2) Manacás, mulungas, ipês, com as suas flores de ouro, algumas das muitas árvores ainda existentes e caraterísticas da Mata Atlântica no local.
 

 
(Gaibu. Estado de Pernambuco. Brasil)

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in, Livro de Contos : O OURO BREVE DOS DIAS

J. A. M.

 

26.11.23

o AVISO

Desenho. J. A. M.

 

Estava eu bem sossegado, afundado no meu cadeirão anti-stress e profundamente enlevado nos meus íntimos sonhos de ser alguém na vida um dia talvez me calhe a vez, quando a minha vizinha me acordou para fora deste delicioso enlevo criativo, com um frenético toque de campaiiiinha que, enfim.

mais umas frases adiante,

fiquei desarmado com uma revista nas mãos que se tinha perdido por entre as caixas de correio. A Sr-ª apresentou-se em cima de uns sapatos de Salto alto muito bem aprumada no geral, até tem um peito jeitoso só hoje é que reparei, há males que vêm por bem, pensei, mas logo me arrependi de tais lucubrações claramente infrutíferas no momento, por uma decisão inconscientemente pessoal, confesso, embora ainda hoje desconheça o que levou a tal.

Bom, agradeci o favor, que obviamente não foi favor nenhum, mas um grandessíssimo "corte" e por hábito, educação ou qualquer outra razão de que já não me recordo, abri a dita revista, que não tinha muitas folhas, mas parecia Grande devido à generosa espessura das folhas, e, e, caí logo na pág. 16. O 16? Como sou um adepto entre o mui fervoroso e o semi-fanático das numerologias, ninguém é perfeito, peguei no telemóvel para fazer as contas e 1+6=7, Zás! ali estava o tal 7, o número mágico por excelência nesta civilização onde deus me faz andar ou penar e vai daí pus-me logo em pulgas a pensar onde poderia encontrar a tal magia.
Então comecei pelo título da pág.: "Desporto, saúde & bem-estar". Saltei logo para o "bem-estar", bem aberto a tal assunto e a prováveis soluções, pois quem anda realmente bem no meio disto tudo?  mas no decorrer das palavras fiquei simultaneamente intrigado, pois havia Muita matéria junta que transbordava um-não-sei-quê de excesso para encher as medidas de quem tem a intenção sub-reptícia de convencer alguém de algo que só tem haver consigo próprio, no intuito para mim claríssimo de um lucro sorrateiro qualquer. Mas pronto.

Estou habituado a estas circunstâncias e já não me ponho com guerras na minha  cabeça, bastam-me as outras. O lucro será deles com certeza é sempre, mas a cabeça é minha, s.f.f., pelo menos por enquanto como isto anda só Deus sabe, algures nos E.U.A.  ouvi dizer que há tecnologias de interferências cerebrais que não lembram ao diabo.

Vim por ali abaixo, saltei as frases supérfluas que surgiam, mas o pior era o tipo de letra emoldurando uma horripilante mancha gráfica, até que me deparei com a palavra em negrito "AVISO". E aí, estanquei definitivamente, com todas as minhas forças possíveis e impossíveis quase, fiz um momento de inclinação corporal a obrigar-me a uma maior concentração no assunto e pus-me a ler o dito Aviso para poder continuar a escrever este artigo de momento, sem qualquer futuro à vista desarmada, pois a vida de um cidadão neste país é um eterno desarmamento de tudo o que é Vida mesmo.

A coisa começou a complicar-se, tudo aquilo eram "artigos" e "sub-artigos" , os "dispostos" os "decretos-lei" e as "deliberações" com datas (em letras menores), mais os "capítulos" e os "subcapítulos",,, Ó minha  Santa Maria Madalena, comecei a ficar farto, farto, enfartado de todo, pois considero-me uma pessoa minimamente culta, minimamente inteligente, minimamente capaz de ler e entender um mero artigo de uma Revista de Informação Camarária, mas efetivamente não estava a entender patavina daquilo.

Adiante.

Trocado por miúdos e muito bem espremido o fruto em causa, quanto à qualidade estamos falados, mas tratava-se mais precisamente de quê?
De um “AVISO” para avisar o povo destas bandas de que foram avisados de que há um prazo de 30 dias "úteis" (ainda estou para descortinar o que é isso de dias "inúteis”) para se realizar uma "discussão pública" acerca de mais uma alteração ao não-sei-quê, que logicamente tem o seu quê de mudança relevante para alguém e o pessoal até tem de ser informado segundo a lei em vigor e essas lérias ditas democráticas, deles.
Agora a questão aqui complicou-se ainda mais, porque na parte final diziam ao povo que 1º tinham de ir a uma determinada morada para consultarem o tal assunto fundeado no meu enigmático número 7, e depois quem quisesse até podia enviar, através de cartas registadas, reclamações ou sugestões, nas " horas normais de expediente ". Só estas palavras do final da frase, atiraram-me abruptamente para profundíssimos momentos de reflexão pessoal acerca deste lado da questão: o que são horas "normais" para eles? Onde param as horas "anormais", que nunca as vislumbrei na minha vida? E qual será o expediente lá do sítio? E no expediente lá do sítio estará lá alguém? ou será a habitual espera-desespera e o habitual culto matricial português do “como-e-cala-te” e hoje em dia o telemóvel é que as paga, para o gáudio dos habituais , está mesmo tudo ligado.

Mas
o que mais me deixou desanimado de todo, confrangedoramente deprimido mesmo comigo próprio e com o mundo e até ouso dizer, com toda a Humanidade que à priori nem era chamada para o caso, foi o facto de perceber - creio eu - que numa declaração tipo preto no branco acerca de uma DISCUSSÃO PÚBLICA, o pessoal era afinal convidado, nestes moldes enviesadamente anacrónicos e absurdamente mirabolantes a ENVIAR CARTAS, se quisesse. (verdade seja dita, não vislumbrei neste textozinho nenhuma insinuação mesmo velada, acerca de uma possível coima ao adotar-se uma eventual atitude de abstenção ou de ausência atempada das ditas cartas no destinatário. Apesar de – a meu ver – a tática dos Medos ser a base funcional e disfuncional Disto Tudo, que designam,ipsis verbis, como sociedades democráticas.)
 
E. Pronto.
Continuo a não entender a ponta de um corno acerca do modo de pensar e sentir e agir dos Senhores que nos governam legitimamente eleitos & tudo.

e para ver se alguém me poderá ajudar neste momento francamente muito difícil da minha vida, vou surripiar uma garrafa de vinho da parte mais nobre da minha pindérica garrafeirazinha encostada à casota do meu "eGo" * e vou ter com a vizinha que me arrancou dos meus criativos enlevos e vou tocar à campainha, muitíssimo ao de leve só um toquezinho de quem está ali desamparado como um toco de vela  moribundo fustigado pela noite, apenas com um pretexto entre as duas mãos e um sorriso naturalmente aparvalhado de quem espreita uma suave e doce vingançazinha.


* trata-se do meu cão.



( J.A.M. texto iniciado em 1993)


17.11.23

na multidão dos dias a vida tornou-se mecânica

Pintura.  J. A. M.

 

Estremece a estrela que em mim vive
naturalmente aberta
á escuridão
e nos 2 olhos cintila
o véu do instante, a aparência maior
do que é superfície e aí se afoga
pois na multidão dos dias a vida
tornou-se mecânica.

Vejo em todos os gestos um silêncio amparado
pelo silêncio que aspiro
o lugar onde qualquer semente pensa
sonhando com tudo
pois nada do que é fruto
acontece sozinho.


( J. A. M.)
 
 

4.11.23

premissas para um poema

Pintura. J. A. M.


- Melhor que mencionar é ser borboleta à volta da lâmpada.

- Transgredir o verbo é ofício de pescador.

- Não preciso de ninguém para ser azul.
Por vezes, também dourado.

- As águas dos rios convidam ao silêncio.
Os de dentro, ainda mais.

- Uma pedra ou uma flor têm o mesmo prodígio nos olhos.

- As pequenas coisas do mundo são discretos elogios a Deus.

- Exaltar os dias e as noites é  o glorioso ofício dos loucos. 


(J.A.M. - Nov. 2023)


27.10.23

Estrelas Apagadas

"Cego do Maio". Foto: J. A. M.

 

Já a noite tinha sido iniciada, os pescadores juntos sentados calados curvados olhavam presos por um fio emaranhado de leves e ondulantes pensamentos o horizonte, como quem lia 1 texto antigo.
Entretanto as nuvens de um lado para o outro, fragmentariamente orquestradas pelo seu próprio destino, lá iam impavidamente diferentes. Nada se cruzava e tudo estava ligado.             
Os barcos continuavam a baloiçar o cais. O mar sempre estivera ali como se fosse eterno. Como um eco longínquo que ainda perdura pelo poder dos olhares de muitas gerações.
E os pescadores aguardavam como quem espera e também não, a hora da partida. Em casa os filhotes mais novatos choramingavam por comidas diferentes e as mães afagavam-lhes os cabelos, com um sorriso esboçado junto ao aconchego do útero.
 
Os pescadores, disse-me um dia um amigo vagabundo nas viagens, viraram estátuas fixas e ali estancaram para o gáudio dos turistas que acudiam aos magotes e as crianças agora pediam moedinhas com uma vida inteira moribunda nos olhares.


(Póvoa do Varzim. Douro Litoral. Portugal)

 

 

- in, livro de contos, O OURO BREVE DOS DIAS. 2021-


Uma Gaiola para um Espaço

Desenho. J. A. M.

À espera de uma imagem inteira. Aos poucos
levanta-se a pele dos dias a descoberta
absurda das horas. O rosto exterior
ao seu fulgor de máscara. Dedo a dedo
invento um momento feito de nudez
e mansas sombras de pássaros, atraiçoados
em gaiolas.

Como caber dentro tantas vozes
transfiguradas e estranhas?



(in, AS MÃOS E AS MARGENS. Editora Limiar.1991)


18.10.23

(aproveito-me das palavras para desarrumar o leito dos rios que me percorrem)

Pintura: J. A. M.

 

 

De um lado o inferno. Ao lado o céu.
 
Regresso ás duas margens: a escuridão e a luz. Os nomes abastados, derivados das noites e dos dias. Há quem os atravesse inventado pela sua natural existência: hoje uma dor, amanhã uma alegria.
Há uma autoridade instalada neste modo de estar na vida. Uma invenção entronizada como se o tempo que temos, enquanto seres vivos, fosse uma tatuagem com o halo da eternidade. Há quem acredite em sentenças descobertas em coisas consideradas simples, um sorriso descido, um olhar iluminado, um gesto que se desenha sozinho, um encontro ao acaso: algemas que se soltam.
 
Nestas paisagens a beleza do Mistério, por onde viajamos, aproxima-nos e afasta-nos de nós. Tornamo-nos íntimos da distância: entre o inferno e o céu há um intervalo por onde o verbo se inicia e expande e tem a intenção de um ofício.
Para cada um as suas margens e o leito do rio convocado através de milhares e milhares de vidas abandonadas com sentido.


( J. A. M. -2023)

 

25.9.23

Pintura. J. A. M.

 

vieram as saudades. De um mundo longínquo.
Os meus dois olhos comidos pela noite.
Onde a suspeita de uma luz pairava: sem sobressaltos
olhei á volta. Tudo era um chão incógnito.
 
Algures em mim uma voz muito distante chamava-me.
Não havia nomes. Não havia palavras.
E algo por dentro tinha a ideia de porta fechada
que a qualquer momento se podia abrir.



( J.A.M.)

 

4.9.23

Sonho devolvido

Pintura. J. A. M.

 

Conheci uma mulher num país distante, era bela e serena e atravessava os dias, os meses, os anos com uma candura sábia de quem sabe que 1 dia também iria morrer, como tudo o que está vivo.
No jardim, seu lugar preferido, sentada num banco de madeira, cuja cor já não se sabia. Ocupava-se a olhar as flores à volta com um vagar e o inverso de uma aparente displicência especial, para mim inteiramente incógnita, até hoje. Às vezes olhava o horizonte, às vezes levantava um pouco o rosto para o céu e aqui era à noite que se demorava mais.
Ao lado quase sempre um livro que a brisa desfolhava quando calhava. Ela parecia ler no ar as palavras que, entretanto, se evolavam das folhas. Parecia nunca usar as mãos e em vez dos braços eu imaginava asas que nunca vislumbrei.
Nunca lhe perguntei nada acerca das artes destes gestos tão silenciosos como as pedras que rodeavam os canteiros. Houve alturas em que me viu olhá-la de longe estava sempre distante, no entanto eu sentia uma levíssima sensação fresca e inquietante, do lado agradável das novidades.
Retrocedia para as minhas tarefas, o pincel, o papel, os quadros, as cores do meu mundo.
De vez em quando, amávamo-nos através dos corpos e parcas palavras. Adivinhávamo-nos através de olhares demorados que continham tudo o que os nossos seres confirmavam.
 
Um dia fui ao jardim, onde era o seu lugar e vi-a adormecida. Chamei pelo seu nome, diminutivo que só ambos conhecíamos, toquei o seu rosto frio, mas apenas vi as flores, todas as flores debruçadas sobre si próprias exalando aromas mais intensos e os frutos maduros das poucas árvores a caírem um a um.


( J. A. M.)

19.8.23

Página de São Tomé e Príncipe

Foto:  ( Ilha do Príncipe). J. A. M.

por vezes, lágrimas do céu descem para lavarem as folhas
das árvores e as estradas começam a brilhar salpicadas pelos
reflexos das pessoas que deambulam na noite pelas suas
bermas através dos seus destinos...


(J. A. M.  Agosto-2023)

14.8.23

São Tomé e Príncipe

Foto: J. A. M. -2023

"(...) o leite das mães tem a pureza das fontes
puras
As manhãs nascem sempre repentinas
São benignas as florestas
E o mar faísca de inusitadas ofertas
Tão tépido o ar, tão doce a doçura desta
aragem (...)"



Conceição Lima,poetisa São-Tomense
in, "Quando Florirem Salambás no Tecto do Pico".

25.7.23

imagem com muitas palavras

 

Pintura: J. A. M.


(1ª dose)


Uma mulher contra um muro. Encostada ao de leve, como quem ampara algo sem nome e prende à sua frente a sombra que a desafia.
Olhando para o chão. Um lugar que não se vê, porque é evidente espelhado nos olhos, que este ser consente no rosto inclinado.
Será o subterrâneo medo de estar viva ou o seu natural segredo de ser mulher, exposto a este mundo assim?


(2ª dose)


(...) Esta é uma outra mulher, mais madura que exalta o seu corpo com um propósito evidente.
Por detrás dela, há um pano de tenda com formas e cores aliciantes e escuras.
- Serão as suas memórias?
O seu espírito torna-se mais branco, na evidência da luz diurna que cai sobre ela.

 

(3ª dose)


(...) Outra mulher deitada com um ar de sofá cómodo e a olhar abertamente para quem a vê. Nada tem a perder.
Mas, para quem a olha demorosamente, há no seu olhar algo de enigma que não é criado para o momento e é o que fica.
Ligando-a realmente à vida.
Repousa ali inteira no seu corpo, mas o seu ser humano é longe e é sempre mais.


(J.A.M. ~ Julho-2010)


11.7.23

COM UM FIO-DE-PRUMO A NOITE

As Artes da Borboleta. J. A. M.

 

Como um fio-de-prumo a noite encimada em tudo
e por dentro uma voz insidiosa e duradoira
o ouro breve dos momentos
atravessa a escuridão com a velocidade dos átomos do Mundo.


 
Também há o universo aceso para todos os lados e os candelabros
dos nossos pensamentos são fagulhas que no ar se cruzam & entrelaçam
e enlaçam as substâncias que unem os presságios das vidas.


 
Tudo tem um propósito errante e nenhuma voz cabe dentro
de todas as línguas faladas, fadadas, caladas da Terra.


( J.A.M.)



3.7.23

EXPOSIÇÂO INDIVIDUAL


 

“Visões de um Viajante”

 

      “Visões de um viajante” é um título que imprime a esta exposição uma dupla vertente: a do caminho, o percurso já longo de José Alberto Mar, e da inovação, que se propõe como visão artística de forte pendor poético e universal.

       Assim, reencontramos o alfabeto iconográfico, já tão característico do pintor, enraizado em arquétipos universais, num fluxo hermenêutico partilhado através de uma dimensão subconsciente e aberto à revelação da vida e à sua celebração. Tudo isto moldado pelo cunho do artista, o seu estilo inconfundível que confere ao conjunto da sua obra uma identidade única.

        Além disso, a obra de José Alberto Mar proporciona-nos uma projeção visionária para outros mundos e universos numa arte que já foi vista, nas palavras de Michael Iva, como *”Arte Futura, no seu melhor. (…) única e futurística” (*). E acrescenta: “A arte do futuro vive hoje.”. Pois sim, não só porque dos seus títulos poéticos, diríamos do artista visual e escritor poeta, reverberam esses ecos que se abrem à interpretação do visitante, numa dimensão simbólica, mas igualmente porque nela reconhecemos os aportes das novas descobertas científicas e novos paradigmas reveladores da incansável pesquisa ontológica do artista inquiridor.

        Em suma, o fulgor do presente e o apelo do futuro confluem na arte de José Alberto Mar em que o belo, conscientemente, protagoniza um diálogo profundo e aberto com o observador e o porvir.

 

“Future Art, at it's finest .Your art is so unique and futuristic. Future art lives today.”
(Michael Iva - Chicago, U.S.A.-2020)

 

 

 

- in, Catálogo. Sofia Moraes,27-06-2023 -

 

30.6.23

SOMBRAS ACORDADAS

 

Pintura: J. A. M.

 

(ao Victor Mendes)

 

Está um dia quente e quanto ao resto é indefinito. Podi tchobi! ...óh podi ca tchobi! ...Deus qui sabi? (1)
Estou sentado na varanda do meu quarto na Residencial Sol Atlântico, com um padjinha(2) amornecido entre os dedos e a pastar o olhar pelo murmurinho geral.
Uma negrinha aí pelos 3 anos brinca na Praça Alexandre de Albuquerque com uma boneca, enquanto a mãe sentada por detrás de uma tendinha, olha à volta como se nem esperasse cliente. Tem à venda rebuçados chocolates amendoins tabaco fósforos, coisas claramente várias & agrupadas numa ordem naturalmente colorida.
Aproximei-me da circunstância e pedi à Sr.ª um pedaço de rapé que embrulhou muito delicadamente num pedaço de jornal, kela é kantu?(3) Ela lá disse com um sorriso morabi(4) enquanto eu continuava atento à menina toda entretida a pentear com os seus próprios dedos, os longos cabelos loiros da barby, comprada com certeza numa das muitas lojas dos chineses por aqui.
De repente, olhou-me e demorou-se como quem se dá conta de um rosto com a pele igual à do seu bebé. Apeteceu-me dizer-lhe algo, mas para além do sorriso cúmplice e desairoso as palavras ficaram-me embarcadas na garganta. O que que eu lhe poderia dizer acerca das infindáveis cores deste mundo e dos homens que separam & dividem tudo?
Ajoelhei-me até aos seus olhos límpidos de todo, peguei-lhe nas mãos juntas, dei-lhe um beijo sentido na testa e senti-me perdoado.
 
 
Quando me voltei, tinha os olhos marejados, creio que pela penumbra densa do nevoeiro que descia, inclinei-me para a rua 5 de Julho em direção à “Gruta” (5) do Neilito, enquanto a noite se instalava na cidade pareceu-me ouvir o eco dos ritmos de um pilão(6) celestial, algures. Os sons acompanharam-me até ao final do jantar e levaram-me pela noite adiante onde, mais uma vez, me deixei perder pelos caminhos de deus, entre estrelas descidas luas abundantes e várias pessoas que se tornaram amigas pelas naturais leis das luzes.

 
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(1)  “Talvez vá chover, talvez não, só Deus sabe.” (crioulo do Sotavento).
        (2)    Cigarro de erva medicinal, elaborado manualmente.
(3)   “Quanto custa?” (crioulo do Sotavento).
(4)   “Amável, afável, atencioso(a), delicado(a), gentil, simpático(a)”. A morabeza é tida pelos cabo-verdianos como algo difícil de traduzir (como a palavra saudade em português) e exprime um sentimento tipicamente cabo-verdiano, análogo à osprindadi na Guiné-Bissau.
(5)   Tasca.
(6)   Utensílio feito de madeira, idêntico ao almofariz, com uma altura média de 60 cm, utilizado para moer alimentos com um pau de madeira mais rija, e com a extremidade arredondada (mão do pilão).


 (Cidade da Praia. Ilha de Santiago. Cabo Verde)


- in, o Livro "lusófono" O OURO BREVE DOS DIAS ". Autor: J. A. M. -


26.6.23

encontros

 

Pintura: J. A. M.


deixo que as tuas mãos se aproximem
entre a concha das minhas
múltiplas mãos
abro-te as minhas portas
onde o teu jardim entra inteiro.


( J.A.M.)

18.6.23

Divagação em Gaibu

Pintura. J. A. M.

 
A varanda é branca com o sol estampado ainda por cima e ao lado há o azul-cobalto das águas do mar e do outro, as muitas árvores da Mata Atlântica emaranhadas nos seus verdes a erguerem uma montanha até à beleza de um imenso céu, onde muitos pássaros coloridos até nos sons que espalham me esquecem nos seus voos
e só muito tempo depois, felizmente
acabo por cair em mim.
 
Aqui ao lado, as folhas das palmeiras continuam penteando a aragem que corre atrás de si e por vezes alarga-se até à mesa e leva-me as outras folhas as palavras, o que me importa?
Na rua as pessoas passeiam-se devagar no meio do tempo. Saboreiam os encontros, param aqui e acolá, trocam poucas frases, poucos gestos, coisas simples, como um sorriso cúmplice na caminhada, já é Tanto!
1 pescador idoso, de boné ainda vermelho e corpo fechado, está esquecido ou estará a lembrar-se, a olharolhar o mar como se lesse um texto.
 
 
Há em tudo uma paz impossível aproximando-se provavelmente a um sopro distraído de deus no meu olhar.
 

 

(Gaibu. Estado de Pernambuco. Brasil.)


- in, O OURO BREVE DOS DIAS -

(  Livro de Contos "lusófonos". Autor:  José Alberto Mar)

14.6.23

Palavras, palavras, por vezes

 

Pintura: "O Sol no Coração". J. A. M.


Palavras, palavras, por vezes cansado das palavras fico completamente à escuta, vazio por dentro, parado, virado para fora. Como se o meu corpo fosse uma harpa aberta aos sons que passam. E então há um outro sol a cobrir as formas do Mundo, o grandioso coração do Universo começa a bater como um pêndulo maduro, a água no corpo a murmurar lá no fundo como nos oceanos e a beleza epidérmica das coisas à volta aparece sem nomes, a vida total continua a transformar-se sem eira nem beira.

E então, vejo que nada em mim é o que sei e sinto, nada em mim é apenas uma ilha a desenhar horizontes de palavras, letras que se juntam para criarem um círculo um entendimento, nada disto tudo faz sentido, sem a Luz e a vastidão da Terra com sementes e as flores e as plantas e as árvores e os frutos e as aves e as pessoas, as pessoas a encherem-nos os dias e as noites.

 

 (Ilhas Desertas. Madeira. Portugal)

 

in, O Ouro Breve dos Dias.

 

J.A.M.


5.6.23

uma doença de sombras

 

Foto: J. A. M.


havia uma doença de sombras. Entranhadas no ar, nos ritmos dos dias, nas pessoas que deambulavam entre estes.
Mas as sombras eram como todas as sombras:  germinadas por uma luz. Esta luz era cega, distante, não se via. Apenas alguns a pressentiam. Por dentro, era por dentro que novas sementes germinavam e quando cresciam o suficiente toldavam os olhares. E algumas pessoas começavam a ver novas flores que as outras não viam, pois havia uma doença de sombras.

Entre a vida e estes dias sonâmbulos instava-se um esquecido tempo sem nomes verdadeiros ou com demasiados nomes. Aparências. Muitas notícias em algazarra. Sinais para as pessoas se ampararem.
Alguns mais desesperados matavam-se. Outros resignavam-se, á espera. A morte, apesar de sempre presente, disfarçava-se de esquecimento. Andava-se de um lado para outro, através de distrações perenes. No fundo, ninguém se via nem via os outros, porque havia uma doença de sombras. No entanto, alguns vislumbravam o que parecia ser natural. Falavam destes tempos de mudanças, sem ninguém os escutar. Acomodavam-se num silêncio de ouro que crescia somente para eles. Aparentemente. Outros ainda gritavam sem ecos. Aparentemente, pois tudo era um vasto Mundo cada vez mais ligado.



( J.A.M.)


1.6.23

Já fui ao Paraíso


 

Há coisas do diabo. Já fui ao paraíso.
E voltei.
Estava já quase acordado no meu quarto do Hotel Europa, quando a Ana e a Joyce abriram a porta em leque cheias de sorrisos floridos e me convidaram para dar um passeio pelas franjas de Gaibu. Lá me levantei um tanto ou quanto aturdido pelas caipirinhas da noitada anterior, mas depois de beber o coco fresco que me atiraram de chofre fiquei logo fino, vesti a t-shirt e os calções de sempre e lá fomos, que nem 1 trio harmonia pelo dia adiante.
Passámos pelas ruínas do Forte São Francisco Xavier, eram pedras amontoadas por ali pelas leis do acaso e com alguma parcimónia sobrava a placa, livrei-me das alpercatas (1) na linda praia de Calhetas, onde vi ondas debruçadas sobre a própria espuma fresca nos meus pés, depois de serem verde-esmeralda e azul-turquesa, e também vi uma foto do jovem Eusébio no bar lá do sítio, ao lado de N ilustres que por ali tinham po(u)sado algures, ao longo dos seus destinos.
Depois continuámos a caminhar por entre árvores (2), plantas e flores de muitas cores e aromas vários, até que a incerta altura num morro inesperado e cheio de um céu azulmuitoazul, vi uma tabuleta tosca de madeira com a palavra: “PARAÍSO”.
As minhas companheiras apanharam o meu ar aparvalhado e eu apanhei-as a sorrirem apenas cúmplices.
 
O que havia a dizer?
 
Lá descemos entretidos com os pés de cada um, a saltitarem de pedra em pedra, até desembocarmos numa espécie de praia com a água muito transparente e a areia prateada pelo pôr-do-sol que se diluía pelas águas até ao esquecimento.
Sentámo-nos a olhar e a escutar o mundo à volta através daquele ponto de vista, dentro do ponto de vista de cada um e os três juntos com as 6 vistas desarmadas, despidas, deliradas.
Já não sei, e pouco me importa, o tempo (o tempo?...) que poisámos ali, a respirar aquele lugar tão belo e simples irrealmente em tudo. Lembro-me vagamente que as palavras eram coisas a mais e a ninguém lhe passou pela cabeça falar de tal assunto.
 
Quando regressámos a Gaibu, numa camioneta que ainda circulava, já lá estava instalada uma noite claramente aberta à nossa festa.
 
 
 
(1) Sandálias de couro.
(2) Manacás, mulungas, ipês, com as suas flores de ouro, algumas das muitas árvores ainda existentes e caraterísticas da Mata Atlântica no local.



( in, O OURO BREVE DOS DIAS, pág. 10)