José Alberto Mar. Com tecnologia do Blogger.

27.2.21

SOMBRAS ACORDADAS


Trabalho Visual. Autor: J. A. M. 













(ao Victor Mendes)

 
        Está um dia quente e quanto ao resto é indefinito. Podi tchobi! ...óh podi ca tchobi! ...Deus qui sabi? (1)
    Estou sentado na varanda do meu quarto na Residencial Sol Atlântico, com um padjinha(2) amornecido entre os dedos e a pastar o olhar pelo murmurinho geral.
    Uma negrinha aí pelos 3 anos brinca na Praça Alexandre de Albuquerque com uma boneca, enquanto a mãe sentada por detrás de uma tendinha, olha à volta como se nem esperasse cliente. Tem à venda rebuçados chocolates amendoins tabaco fósforos, coisas claramente várias e agrupadas numa ordem naturalmente colorida.
      Aproximei-me da circunstância e pedi à Sr.ª um pedaço de rapé que embrulhou muito delicadamente num pedaço de jornal, kela é kantu?(3) Ela lá disse com um sorriso morabi (4) enquanto eu continuava atento à menina toda entretida a pentear com os seus próprios dedos, os longos cabelos loiros da barby, comprada com certeza numa das muitas lojas dos chineses por aqui. 
     De repente, olhou-me e demorou-se como quem se dá conta de um rosto com a pele igual à do seu bebé. Apeteceu-me dizer-lhe algo, mas para além do sorriso cúmplice e desairoso as palavras ficaram-me embarcadas na garganta. O que que eu lhe poderia dizer acerca das infindáveis cores deste mundo e dos homens que separam & dividem tudo?
     Ajoelhei-me até aos seus olhos límpidos de todo, peguei-lhe nas mãos juntas, dei-lhe um beijo sentido na testa e senti-me perdoado.
 
    Quando me voltei, tinha os olhos marejados, creio que pela penumbra densa do nevoeiro que descia, inclinei-me para a rua 5 de Julho em direção à “Gruta”(5) do Neilito, enquanto a noite se instalava na cidade pareceu-me ouvir o eco dos ritmos de um pilão(6) celestial, algures. Os sons acompanharam-me até ao final do jantar e levaram-me pela noite adiante onde, mais uma vez, me deixei perder pelos caminhos de deus, entre estrelas descidas luas abundantes e várias pessoas que se tornaram amigas pelas naturais leis das luzes.

 

 



(1) “Talvez vá chover, talvez não, só Deus sabe.” (crioulo do Sotavento).
(2)  Cigarro de erva medicinal, elaborado manualmente.
(3)  “Quanto custa?” (crioulo do Sotavento).
(4) “Amável, afável, atencioso(a), delicado(a), gentil, simpático(a)”. A morabeza é tida pelos cabo-verdianos como algo difícil de traduzir (como a palavra saudade em português) e exprime um sentimento tipicamente cabo-verdiano, análogo à osprindadi na Guiné-Bissau.
(5)  Tasca.
(6) Utensílio feito de madeira, idêntico ao almofariz, com uma altura média de 60 cm, utilizado para moer alimentos com um pau de madeira mais rija, e com a extremidade arredondada (mão do pilão).

     

 (Cidade da Praia. Ilha de Santiago. Cabo Verde)



P.S. texto integrado no meu Livro de Contos "lusófono":

O OURO BREVE DOS DIAS.


18.2.21

Alguém passeia-se porque lhe deu para tal

Foto trabalhada. Autor:  J. A. M. 










 

     Alguém passeia-se algures por caminhos e paisagens onde há pedras pelo chão e acontece-lhe curvar-se de repente, por algo que o chama sem dar-bem-por-isso e há um diamante entre as suas mãos, o olhar turva-se pelo brilho que o sol, atento a tudo onde há vida, lhe oferece no mesmo instante e depois há quem veja logo ali um presente, ou há quem não dê conta do vislumbre que lhe aconteceu e continue apegado aos seus hábitos, atirando o pequeno seixo para as águas de rio que desliza por perto no seu ocaso indiferente a tudo isto.
      Os hábitos escravizam, tornam-nos cegos.
    Todos os dias acontecem coisas assim, parecem banais porque são diárias, mas não o são, não.
      Nada é banal nesta vida que nos está acontecendo.
    E por aqui os diamantes não têm quaisquer preços, são iluminadas fontes metafóricas, criadas pela infindável sede que habita os profundos lençóis da Terra. E das pessoas, também.
 

- Quanto demora uma idade a ser luz?

 

(Ourique. Alentejo. Portugal)


P.S. Texto integrado no Livro de Contos: O OURO BREVE DOS DIAS.

14.2.21

~ blue men on fire ~

 

Depois de viajar por muitos universos, as asas descem
mais cegas
mais frágeis
apenas dois olhos na luz possível.


Por aqui, neste mundo, á minha volta: 2 universos, apenas: o Universo do Amor e o Universo do Medo. Cada um com inúmeras portas e janelas e nomes encobertos e descobertos por onde se entra e sai e se volta a entrar e a sair. Quase eternamente. O círculo ou a espiral, ainda a sobrevivência do macaco nas demonstrações da luz ou a luz derramada em forma de cruz. Tudo crenças. Tudo inscrito, tudo escrito em todos os lados, dentro das cabeças, na imensa água do interior do corpo, nas paredes levantadas, por fora e por dentro, nas alegrias e na dor.

 ( J. A. M. )

Pintura. Homem  azul ardendoJ. A. M. ( 2021)

12.2.21

Vivemos dias em que há uma escuridão sem rosto

Autor: J.A.M.

 












Vivemos dias em que há uma escuridão sem rosto

como um lençol negro caído sobre os nossos hábitos

e assim é mais fácil conhecer as dores dos corpos

(alguns são corpos caídos na luz final

onde parece não haver retorno ...)

mas quanto às almas, quanto às almas, quem canta isto?

um novo mundo que já começou.


(J. A. M. - 21)


Disturbed - Sound of Silence "Legendado em Português": https://youtu.be/RM3sQ3Omz0w


8.2.21

Ponta d´Areia











( St.o António de Alcântara. Maranhão. Brasil. Foto: J. A. M. )



     Estou na Ponta d’Areia (1). Deitado ou sentado à sombra, aí uns 30 e tal graus.
O guarda-sol é cor de mangas maduras e eis à minha frente o mar vivo e aceso. Do céu vários azuis luminosos descem naturalmente sobre tudo o que é vida.
     À minha volta, o povo espraia-se finalmente no seu domingo.
     As crianças vivem à solta por aqui, onde o mar deslaça dia & noite as suas ondas e elas, as crianças, dão cambalhotas e correm chapinhando a água dócil, entre pequeno sal/tos de quem está mesmo felizmente feliz e quer continuar assim, sem precisar de o querer. Há gazelas morenas, umas a seguir às outras, é difícil acompanhar com a merecida atenção tantos ritmos ondulantes e belos, sob este sol de Deus. Passa uma caipira (2) com o peso dos anos no rosto grudado pelo sal que vagueia pela aragem e com uma caixa transparente no braço leva ovos de codorniz, camarão cozido, umas comidas que outros irão comprar, com certeza.
     Olhando para trás, vejo 2 candeeiros públicos ainda acesos, o que não me espanta (pois em Portugal também acontecem estes descuidos) a despontarem entre as cabeleiras verdes das árvores sossegadas e claramente alheadas do assunto. É de lá - dessas bandas - que chegam até aqui aquelas músicas populares, sempre a tocarem as esferas do coração. Muitas pessoas cantam-nas em grupos e alegram-se simplesmente assim.
     Um papagaio caiu, tombou mesmo agora a meus pés e re/ paro que é feito de plástico, que já foi saco de supermercado + uns pauzinhos de coqueiro aliados, e ainda mais agora, o menino já o ergueu no ar e aquela coisinha frágil como Tudo, dá curvaS sozinho com a cauda louca sem tino e esburaca o espaço, rodopia veloz e depois ,,, cai outra vez no chão aparentemente sólido do mundo e a criança continua a ser criança a brincar e já é muito, tomara eu.
     A menina do bar, mini-saia de ganga boa perna, camiseta vermelha desabotoada, bandeja prateada na mão esquerda, já aviou mais umas garrafas de Sol (3) a uns jovens que estão pr’ali num forrobodó evidente e regressa ao balcão, esvoaçando um olhar geral pelas mesas dos seus clientes.
    Um bandozinho de sabiás-da-praia passa à frente do meu olhar a rasarem o grande areal, com cadeiras e mesas azuis, vermelhas e brancas e desaparecem numa curva uníssona do tempo, o que é feito deles? pensei, enquanto uma outra parte de mim se regala a misturar as cores do cenário em jogos infindáveis.

     Lá adiante, lá mesmo ao fundo, onde o céu se afunda numa tira horizontal de água mais cintilante no brilho, faz-me lembrar que amanhã irei a Stº António de Alcântara, por onde um touro (4) passeia a sua estrela de cinco pontas na testa carimbada, em noites de lua cheia.

 

 

(1)    Praia localizada a cerca de 4 km do centro da cidade de São Luís, muito movimentada principalmente aos fins de semana, pela população local.

(2)    Pessoa humilde do campo, da roça, do interior do Estado.

(3)     Marca de cerveja brasileira.

(4)    Segundo uma interpretação livre de lendas populares brasileiras, na lha dos Lençóis, D. Sebastião mora num palácio de cristal que se ergue no fundo do mar próximo à ilha considerada encantada. Consta que o rei vagueia pela praia, durante a noite, na forma de um touro com uma estrela de ouro (ou de prata), na testa. Se alguém conseguir atingir a estrela e ferir o touro, o seu reino será desencantado e D. Sebastião poderá regressar a Portugal.

- Há quem relacione estas lendas, com a possibilidade do “5º Império”.

 

 

(São Luís. Estado do Maranhão. Brasil)

 

 

P.S. Conto integrado no Livro: O OURO BREVE DOS DIAS

Autor: José Alberto Mar.

 


5.2.21

É PRECISO ESCOAR A KOISA

 
Uma mulher negra, com um olhar divagante, coberta de panos amarelos sentada num banco de madeira pintado de verde, no jardim da Praça. No banco ao lado um Sr. de camisa e calças vermelhas, estirado num banco também verde à sombra de outra acácia ainda mais verde.
O sino do relógio vai dando badaladas bem compassadas ao ritmo do calor hoje mais abafado, será que vai haver tchuva?
Passam mulheres e mulherzinhas agrupadas, com as bundas arrebitadas todas janotas em direção à igreja já apinhada de crentes para a missa domingueira. Espreito discretamente e parece-me haver ali um fervor amornecido, uma entrega naturalmente física à devoção, neste caso católica, mas a fé lá no fundo terá algum nº de porta?
No jardim, um casalinho namora espreguiçadamente num outro banco de cimento já sem cor. Ela deitada sobre o colo ali à mão de semear e ele com as mãos dedilhadas no corpo da paixão. No chão quente do dia as suas sombras estremecem sem eles darem por isso. Evolam-se pelo ar formas de tesão & paixão, cores encarnadas vivas que até acordam as flores sonolentas à-volta.

Volto a dar 1 longo passeio pelo Plateau (1),sem deixar de passar pelo mercado onde as cores e os aromas levantam os sorrisos das vendedoras. E volto ao lugar. A meu lado, encostado à fonte central com uns barulhinhos de cascata, está um homem com o cachimbo adormecido na mão e um ar de quem já não espera nada & também não se rala com isso. Talvez esteja em plena divagação do seu ser, talvez seja mesmo o seu modo de estar, talvez a luz do seu olhar esteja toda estancada no pequeno sol de dentro, mas o que sei eu?
Passam mais meia-dúzia de moços todos coloridos e alegres, entretidos com eles próprios em direção aos finais da missa, na igreja matriz de traça colonial há dois séculos ali plantada. É a hora das moças saírem e acontecerem luzinhas entre os olhares.
Ouço o barulho de uma moto bastante na Av.ª Amílcar Cabral e leva atrás, de reboque, um gajo de patins a deslizar por ali como gente grande, lá vai ele a espalhar o seu imenso sorriso branco pela cidade adiante
 
Adiante, adiante que é sempre tempo para se ser feliz.

 

 

(Cidade da Praia. Ilha de Santiago. Cabo Verde.)



(1) Zona histórica central da cidade da Praia.

 

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P.S. Texto integrado no livro de contos, " lusófonos ":
 O OURO BREVE DOS DIAS
 

2.2.21

Lançamento do livro: O OURO BREVE DOS DIAS.


 













Foi lançado em São Paulo, (Brasil), o meu Livro de Contos: 

O Ouro Breve dos Dias.

Para já, em  formato ebook.


O Livro em formato ebook e igualmente em suporte papel, será divulgado logo que possível, em Portugal.


( Contém contos escritos em vários locais do  Brasil, Cabo Verde e Portugal.)


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O autor publicou anteriormente os seguintes livros de poesia:


 - O Triângulo de Ouro (Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores – 1987), Editora Justiça e Paz, Porto, 1988.

- As Mãos e as Margens, Editora Limiar, Porto, 1991.

- A Primeira Imagem, Editora “Sol XXI” – Lisboa, 1998.