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| Pintura. J. A. M. |
Quando cheguei a Porto Novo, através de um
ferryboat que dançou toda a viagem desde São Vicente, dei-me conta que não
tinha 1 escudo em algum bolso. Máquinas automáticas por ali também não. Mais
uns minutos adiante o gerente da única dependência bancária no local, após uma
conversa que tentou ser convincente e persuasiva e até o foi ao cofre da dita e
depositou-me 10 contos na mão. Depois paga-me. Nada
habituado a tais gestos apeteceu-me repentinamente beijar-lhe os pés, mas no
lugar dos mesmos havia uns sapatos pretos a reluzirem que me estancaram a
intenção e ainda fui a tempo do tal bom senso. Após as mais que necessárias
palavras da ocasião, amanhã venho ká pagar-lhe/ não é necessário basta
depositar nesta conta lá no Mindelo/ Muitíííssimo obrigado e aqui num
gesto realmente espontâneo, fiz da sua mão dtª uma pérola entre as minhas duas
mãos em concha, olhei-o direto nos olhos e disse-lhe algo onde as palavras não
chegam, mas vi logo que ele tinha lá chegado. Os cabo-verdianos são pessoas de
uma sensibilidade subtil muito rara e suspeito que a morabeza será
um dos frutos desse estar.(1)
Ficou um sorriso cúmplice matriculado no ar, algo de belo neste
mundo, a que regresso algumas vezes pelos imperiosos acasos da memória ou os
outros casos que não sei. E saí para o sol que logo me abençoou num
aconchego entre nós tão íntimo, tão normal, que me senti
humildemente feliz pensando com os meus botões, neste caso de rosas que
brotaram de repente à frente dos meus olhos deslumbrados.
E então chamei a namorada que estava visivelmente em baixo devido
à situação nesta outra altura já resolvida. Dei-lhe uma explicação por alto
acerca do milagre acontecido, metemo-nos num “hyace” que estava por ali à
espera de ficar cheio e lá fomos sem precisarmos de saber qual o destino. A
certa altura o motorista resolveu fazer uma stopagem mais ou menos breve numa
montanha altíssima cujo nome não me ocorre agora, mas ocorre-me muito bem a
beleza estonteante das paisagens que se multiplicavam entre si nas incontáveis
pontes do olhar. Lá em baixo o desenho de um telhado de milho seco outro além,
mais uma cabra ou outro animal manso ligados ao silêncio de basalto que
murmurava algures num ribeiro vivo por aquelas “levadas”.
Desembocámos em Paúl, um tanto ou quanto azoados pelos ziguezagues
do percurso começámos por enxergar algumas casas juntas com as portas e as
janelas de cores vivas claramente, o cheiro do marisco a toldar tudo muito
parado aparentemente com as raízes afundadas nos desígnios de uma ilha, onde
jovens dengosas deitadas sobre os muros das suas vidas e amornecidas pelo sol
alongavam as belas pernas nuas para o mar que estava bravo e os
machos entretinham-se convictamente a jogar o “úril”(2) entre os meandros
das bolinhas verdes escurecidas por muitas gerações e protegidos pelas sombras
bafejadas por um marmulano.
Como todos sabemos, quando estamos bem o tempo é outro e,
entretanto, chegou a hora já pago o bilhete de retorno lá me arrankei do lugar
e só eu e Deus é que sabemos com que esforço, transportámos dali os olhos
os ouvidos o corpo inteiro a transbordar em ondas. Quando me aproximei de
Mindelo num outro ferry ainda mais baloiçado reparei no habitual nevoeiro agora
aceso pelo pôr-do-sol que acontecia sobre a cidade. Também re/parei que estava
só e quase tinha a certeza de ter ido com a namorada.
Desembarquei com aquele maralhal todos muito coloridos por todos
os lados, à espera havia outros aromas atlânticos que me acompanharam até ao
“café Mindelo” onde troquei algumas frases com uns amigos acerca de algo que
talvez fosse relevante na altura. Para variar, fui jantar à esplanada do Grande
Hotel, bem acompanhado pelo bulício redondo da Praça Nova e, por fim, abri-me à
noite mindelense e fiquei com a impressão que fui engolido pela mesma
francamente já não me lembro de + nada
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(1) "É
por isso que te aconselho a tomares lição nessa gente para depois falares, com
propriedade, da sua vida e das suas lutas. Se queres falar de dor, sofre
primeiro. Sem isso não mereces o mandato”.
(Manuel
Lopes, escritor.)
(2) "Pensa-se que o jogo terá sido inventado pelos egípcios que
depois o levaram para a Ásia e Filipinas. Mais tarde, chega à África Negra, e
região do Sahara. Por volta do século XV ou XVI, os escravos terão levado o
úril da África para a América, mas atualmente apenas há registo de que se
pratica nas Antilhas”, explica Albertino Graça, praticante de úril e autor do
livro “Jogo de Uril: Regras, Estratégia e Teoria” (Edição da ONDS - Organização
Nacional da Diáspora Solidária, Mindelo).
(J. A. M. ~ Ilha
de Santo Antão. Cabo Verde)