José Alberto Mar. Com tecnologia do Blogger.

27.10.23

Estrelas Apagadas

"Cego do Maio". Foto: J. A. M.

 

Já a noite tinha sido iniciada, os pescadores juntos sentados calados curvados olhavam presos por um fio emaranhado de leves e ondulantes pensamentos o horizonte, como quem lia 1 texto antigo.
Entretanto as nuvens de um lado para o outro, fragmentariamente orquestradas pelo seu próprio destino, lá iam impavidamente diferentes. Nada se cruzava e tudo estava ligado.             
Os barcos continuavam a baloiçar o cais. O mar sempre estivera ali como se fosse eterno. Como um eco longínquo que ainda perdura pelo poder dos olhares de muitas gerações.
E os pescadores aguardavam como quem espera e também não, a hora da partida. Em casa os filhotes mais novatos choramingavam por comidas diferentes e as mães afagavam-lhes os cabelos, com um sorriso esboçado junto ao aconchego do útero.
 
Os pescadores, disse-me um dia um amigo vagabundo nas viagens, viraram estátuas fixas e ali estancaram para o gáudio dos turistas que acudiam aos magotes e as crianças agora pediam moedinhas com uma vida inteira moribunda nos olhares.


(Póvoa do Varzim. Douro Litoral. Portugal)

 

 

- in, livro de contos, O OURO BREVE DOS DIAS. 2021-


Uma Gaiola para um Espaço

Desenho. J. A. M.

À espera de uma imagem inteira. Aos poucos
levanta-se a pele dos dias a descoberta
absurda das horas. O rosto exterior
ao seu fulgor de máscara. Dedo a dedo
invento um momento feito de nudez
e mansas sombras de pássaros, atraiçoados
em gaiolas.

Como caber dentro tantas vozes
transfiguradas e estranhas?



(in, AS MÃOS E AS MARGENS. Editora Limiar.1991)


18.10.23

(aproveito-me das palavras para desarrumar o leito dos rios que me percorrem)

Pintura: J. A. M.

 

 

De um lado o inferno. Ao lado o céu.
 
Regresso ás duas margens: a escuridão e a luz. Os nomes abastados, derivados das noites e dos dias. Há quem os atravesse inventado pela sua natural existência: hoje uma dor, amanhã uma alegria.
Há uma autoridade instalada neste modo de estar na vida. Uma invenção entronizada como se o tempo que temos, enquanto seres vivos, fosse uma tatuagem com o halo da eternidade. Há quem acredite em sentenças descobertas em coisas consideradas simples, um sorriso descido, um olhar iluminado, um gesto que se desenha sozinho, um encontro ao acaso: algemas que se soltam.
 
Nestas paisagens a beleza do Mistério, por onde viajamos, aproxima-nos e afasta-nos de nós. Tornamo-nos íntimos da distância: entre o inferno e o céu há um intervalo por onde o verbo se inicia e expande e tem a intenção de um ofício.
Para cada um as suas margens e o leito do rio convocado através de milhares e milhares de vidas abandonadas com sentido.


( J. A. M. -2023)