José Alberto Mar. Com tecnologia do Blogger.

6.5.22

Porto noturno

Jardim de João Chagas ou Jardim da Cordoaria

 

até que enfim o Porto hoje era uma cidade viva às 3 horas da manhã ainda havia uma chusma de gente nas ruas à volta dos Clérigos e, enquanto resolvia comigo a estranheza da novidade, acabei por me sentar numa cadeira à frente do café Piolho. Havia pessoal desordenado, em grupos, falavam, riam, bebiam. Gostei. Havia também um aroma quente no ar e fiquei por ali o tempo de 2 finos frescos, ou foram mais?
Depois, atravessei a escuridão do jardim da Cordoaria, onde revi de soslaio, mas com natural atenção, as estátuas do Juan Muñoz. com aquela parca luz geral a gentinha do nosso hermano ganhava um ar mais severo e bizarro.
Mas porque é que não estavam parados?

As extensas sombras pelo chão pareciam levitar ao som dos candeeiros sobriamente acesos. Ao fundo, ainda estalavam no ar as gargalhadas dos jovens, abrindo a noite a outras luzes mais


(J. A. M.

- Porto. Portugal. 2007 - 


P.S. texto incluído no Livro de Contos
  O OURO BREVE DOS DIAS. 2021.

 


3.5.22

deslizando sobre as águas do Mundo

Maranhão. Br. ( Foto: J. A. M. )

 










Havia 1 marinheiro que tinha um barco.

Havia 1 barco que tinha um marinheiro.

Ambos não tinham nada, a não ser o mar

e os horizontes.

 

Eram muito felizes naquela cumplicidade silente

com o marulhar sempre tão presente

que, quase sempre, parecia ausente.


( J. A. M. )

 

 

30.4.22

de passagem

Autor: J. A. M.















Eis a quimera. A cada momento
o halo do permanente mistério
no rosto, ou no olhar ou
nas inesperadas surpresas
que nos acontecem.

Olho á volta como se tudo estivesse
em mim, como realmente está
e sou a árvore, a brisa, as nuvens
eis as quimeras
que logo esqueço para ser 1 outro
que se enlaça à  vida
um travo a mais é sempre
bem vindo.


( J. A. M. - 14-04- 2022)


24.4.22

Porque é que cresce a mão para a palavra?

Pintura: J. A. M.

 















Há o sol e as matérias primas
dentro do sangue nos corpos
há os dias e as noites recolhidas,
submersas até aos dedos
e ainda há o Mundo e as pessoas
os animais, as árvores, a Natureza
e a vastidão da respiração
que vem do coração da vida
seio de idades invadidas por tantos rostos
e há instantes imprecisos em que somos quase
inteiros
no útero de tudo onde as vozes se instalam
mas só às portas soltam as suas âncoras:
as palavras, as sombras que agora vos escrevo.
 
O olho do mundo dança-me na cabeça
ao sabor das luzes que giram
na alta nudez sem nome.


( J. A. M.)

 

20.4.22

"ESCUTA, ZÉ NINGUÉM !" (Wilhelm Reich, 1946)

Imagem transformada: J. A. M. 

 

"(...) é de ti que depende o futuro da Humanidade. E tenho medo de ti porque não existe nada a que mais fujas do que a encarastes-te a ti próprio. Estás doente Zé Ninguém, muito doente, embora a culpa não seja tua. Mas é de ti que cabe libertares-te da tua doença. 
Já há muito que terias derrubado os teus verdadeiros opressores se não tolerasses a opressão e não a apoiasses tu próprio.
Nenhuma força policial do mundo poderia prevalecer contra ti se tivesses ao menos uma sombra de respeito por ti próprio na tua vida quotidiana, se tivesses a profunda convicção de que, sem o teu esforço, a vida sobre a terra não seria possível por nem uma hora apenas. 
Será que o teu "libertador" to disse?
 
(…) és tu quem transforma homens medíocres em opressores e torna mártires os verdadeiramente grandes; que os crucificas, os assassinas e os deixas morrer de fome; que não te ralas absolutamente nada com os seus esforços e as lutas que travam em teu nome (...)"

CONVITE ( Lusofonia)


 

10.4.22

Felizmente vivo

Autor: J. A. M.

de manhã, quando as aves ainda parecem sonhos
e já as claridades esvoaçam
abrindo as portas e as janelas
de encontro aos olhos de quem acorda


e os rios de ouro abrem as vozes
à procura dos mastros humanos
onde há gente viajada em nascentes


e a Beleza do mundo é 1 presente simples
e tudo se ampara nos muitos eus
que devagar se unem
enlaçando a infância, o futuro e o agora


de manhã quando algo estala o silêncio
instaurado e já ouço
o cantarolar aceso dos pássaros
Felizmente vivo
mais um dia.


( J.A.M.)




3.4.22

esta vida é um sopro

Autor: J. A. M.

à volta estranho não escutar
os pássaros
os belos sons da cascata do rio
neste lugar
onde o sol se debruça
onde a minha alma é sempre pouco
para ocupar o espaço
que aparentemente me abraça.

Há uma semente estrangeira
no meu coração
por vezes ilumina-se, outras vezes
sussurra, outras vezes ainda
adormece, desamparada
como um pássaro elevado
pelo centro da noite
entre as estrelas sempre muitas
e a minha solidão de ser humano.


(J. A. M. - 22-03-2022)


20.3.22

já não recordo, pois foi num campo de batalha ...

Pintura: J. A. M. 

 

Alguém disse já não recordo, pois foi num campo de batalha e o ribombar das bombas e dos seus ecos na altura, faziam-nos surdos. A outros, faziam-nos cegos. A outros ainda, faziam-nos mortos.
Mas a frase em questão, no meio daquele inferno encantou-me o lugar e por momentos caí num silêncio sem tempo, que me trouxe a casa de meus pais, longe muito longe, onde havia um jardim. E a frase era assim: não corras atrás das borboletas, cuida antes das tuas flores que elas virão até ti (1).
 
Ainda hoje, passados séculos, por vezes em dias ou noites em que tudo parece estranhamente desolador, me acontecem as imagens bem nítidas que esta frase levanta à frente do meu olhar.
E então, algo em mim se transforma e tudo à minha volta também. E uma flor leve e doce aflora por dentro.


(1) frase atribuída, a D. Elhers, em tradução livre.

 

18.3.22

Pintura: J. A. M. 

Colher escolher à tona o desejo mais fechado
em cada instante
entregá-lo aos olhos e dizer: como acontece o coração
no seu exacto pensamento. Onde felizmente
há música na geometria dos astros
e um início de ouro a cada momento.

4.3.22

Onda

Pintura: J. A. M.


Bate-me à porta a noite
o silencioso exercício do Mundo
acontece-me na mais pura beleza 
do que parece estar nu.

Inspira-me a visão das linhas curvas
dos sons e a inutilidade das mãos
quando a intenção desta beleza é estar
à altura do espanto. 

Sou, pois, mais um ser
dominado pela voz, cantando
o seu exemplo de onda
transformada em espuma.


( J. A. M.)

1.3.22

Abraço.

Pintura: J. A. M. 

 

Palavras, palavras, por vezes

 

Palavras, palavras, por vezes cansado das palavras fico completamente à escuta, vazio por dentro, parado, virado para fora. Como se o meu corpo fosse uma harpa aberta aos sons que passam. E então há um outro sol a cobrir as formas do Mundo, o grandioso coração do Universo começa a bater como um pêndulo maduro, a água no corpo a murmurar lá no fundo como nos oceanos e a beleza epidérmica das coisas à volta aparece sem nomes, a vida total continua a transformar-se sem eira nem beira.

E então, vejo que nada em mim é o que sei e sinto, nada em mim é apenas uma ilha a desenhar horizontes de palavras, letras que se juntam para criarem um círculo um entendimento, nada disto tudo faz sentido, sem a Luz e a vastidão da Terra com sementes e as flores e as plantas e as árvores e os frutos e as aves e as pessoas, as pessoas a encherem-nos os dias e as noites.

 

J. A. M.

 

in, “ O Ouro Breve dos Dias”. 2021.

( Livro de contos, escritos em Portugal, Brasil e Cabo Verde )

15.2.22

~ 18ª folha de 1 diário perdido ~

MUNDOS PARALELOS( 105X105 cm). J. A. M. 

Atravesso os dias como quem viaja. Quase tudo é inesperado porque nada espero.
Por vezes, levanta-se um farol. Às vezes, é metáfora outras vezes é mesmo visão ou alucinação. A distância do momento faz um laço entre o que em mim há de vivo e está acordado e o que me trespassa. Fica um resíduo de luz que permanece e aos poucos se esvai.
Nestas margens os nomes são difíceis. Os nomes praticamente não existem. Tornam-se as sombras por onde a minha viagem me acompanha.
Há pontes por estes caminhos. E rios que desaguam para dentro das vozes. Abundantes águas há neste planeta.
Mas só em silêncio vejo o meu rosto multiplicado por 1001 rostos que acabo por saber serem meus.