José Alberto Mar. Com tecnologia do Blogger.

6.7.16

Sensação a veludo nas mãos


 
Primeiro foi uma sensação a veludo nas mãos, a carne à flor da pele era  macia de um modo tão suave e a pedir só mansidão e elas, as mãos, transcorriam bêbedas com todos os seus 10 dedos nas polpas sensíveis cada vez eram mais e eu lá no fundo, no final da sensação, deixava-me navegar com toda a preguiça esboçada do mundo, por este mar de novidades que aquele corpo me emprestava no silêncio ofegante da noite.
E ela deitada, absorta no seu sonho de ser mulher para as minhas mãos e eu sentia-a a crescer nos ritmos da respiração, e de um lado e do outro, ambos éramos mais próximos, como se houvesse uma indeterminada luz pelo meio, que tínhamos de possuir precisamente ao mesmo tempo.
Tudo ilusão. E, no entanto não era. Eu estava ali, ela também, éramos dois corpos com as portas escancaradas de todo. A aragem das mãos esvoaçando sobre a pele de veludo, era o que sobrava do silêncio de chumbo, onde os nossos corpos jaziam. Havia entre nós, um nó inteiramente aceso por dentro, onde as línguas mais aprumadas já não dizem palavras. Os gestos criavam outros mundos, onde só nós cabíamos, onde só nós éramos quase perfeitos espera de o sermos.

 

  (Brasil. São Luís do Maranhão. Algures por 2007/ 2027)

27.6.16

( MAURO, O Poeta da Ilha)



 
Arrastava mais um pé do que outro e eu reparei no seu ar luminoso abrir airosamente a noite. Ia a passar perto do meu lugar e eu senti que podíamos trocar algumas luzes. Convidei-o a sentar-se ali, por baixo da grande árvore nocturna. Vi o seu olhar inclinado para o meu copo e perguntei-lhe o que bebia. Não tardou a abrirem-se as nossas portas, uma de cada vez e cada uma no seu lugar mais claro e íntimo. Sem correntes de ar ruidosas pelo meio.
Era um poeta e eu disse-lhe que também era um aprendiz de poeta. (Ele lembrou-se deste pormenor passado uns dias, quando à sombra de outra árvore mais diurna, voltámos a trocar meia-dúzia de luzes pessoais.)
Ele arrastava uma perna quando andava, mas falava sem arrastar nenhuma das suas asas. Aí, ele crescia em voos cheios de altura e distância e às vezes, descia um pouco, para recitar um poema seu, que parecia ler no meu rosto. Eram sempre feitos de simplicidade e lonjura e eu ficava mais pequeno e escutá-lo e a olhá-lo com todo o orgulho do mundo, pois já éramos amigos.
Hoje, vejo-o a levantar a noite da sua ilha, livre como sempre, feliz e a cantar alegremente toda a escuridão que há na sua vida de poeta.

 

 

 (São Luís.Maranhão.Brasil.)

 

20.6.16

17.6.16

estremece a estrela que vive naturalmente




Estremece a estrela que vive naturalmente aberta
à escuridão
e nos 2 olhos cintila o véu do instante, a aparência maior
do que é superfície e aí se afoga
na multidão dos dias a vida deles é mecânica.

Vejo nos gestos o silêncio amparado
pelo silêncio que aspiro, o lugar onde
qualquer semente pensa
sonhando com tudo
pois nada do que é fruto
acontece sozinho.


(Set.-2009)

Série: pequenas sabedorias (Nº27)

Autor: J.A.M. ( 2015)
 

mas porque é que cresce a mão para a palavra?



Há o sol, as matérias primas
dentro do sangue
e há a noite recolhida, submersa
e ainda há as pessoas
e a vastidão da respiração
no coração
seio de idades invadidas por tantos rostos
e há pontos imprecisos em que somos quase
inteiros
e há o útero de tudo onde as vozes se instalam
mas só às portas exaltam os sons
nas palavras que agora escrevo


o olho do mundo dança-me na cabeça
ao sabor das luzes que giram
na alta nudez sem nome.


 

(Nov.2008)

auto.retrato.incendiado

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 foto: J.A.M. ( São Luís do Maranhão.Br.)

11.4.16

rio preguiças





Um barco desliza nas águas ao de leve sonoras.
Enquanto a noite desce como um lençol suavemente escuro
apagando o rio, que era azul
e agora já é um espelho prateado deitado sobre o mundo.
Alongado pela vastidão que se recolhe nos olhos de quem só olha.

Há em tudo uma paz impossível, e eu vejo o teu rosto e tu pareces não ser.
Olho-te de novo, e tu olhas-me assim:
tão perto e tão longe, no fundo de mim, que me deixas mais nu.
Eu sei:
és aquela que me ama do fundo das águas
que agora nos unem.
Eu sou aquele que procura
e te dá o silêncio inteiro das minhas duas mãos nas tuas.
Pois, no fim desta escuridão
somos sempre sozinhos.
A partir de agora, entre nós
não haverá mais segredos.





Poema e foto de
José Alberto Mar
- In, Colectânea "Os Dias do Amor". Pág. 304,
Editora Ministério dos Livros.2009

26.3.16

Cresce a mão para as palavras


 
mas porque é que cresce a mão para a palavra?

 
Há o sol, as matérias primas
dentro do sangue
e há a noite recolhida, submersa
e ainda há as pessoas
e a vastidão da respiração
no coração
seio de idades invadidas por tantos rostos
e há pontos imprecisos em que somos quase
inteiros
e há o útero de tudo onde as vozes se instalam
mas só às portas exaltam os sons
nas palavras que agora escrevo

o olho do mundo dança-me na cabeça
ao sabor das luzes que giram
na alta nudez sem nome.

 

(Nov.2008)

Das Américas do Sul

15.2.16

VOZES COMUNICANTES




Às pessoas nómadas nos corpos e nas almas
um beijo indelével no rosto ausente
intervalo onde tocamos juntos
a íntima diferença no único coração das coisas.

Sobre as minúsculas ciências dos homens
pousamos a luz urgente de outros olhos
desce sobre nós
a lucidez dos universos vivos.


(in, O Triângulo de Ouro - Editora Justiça e Paz.1988)
- Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.1987

28.1.16

14.1.16

E, No Entanto Há uma Luz



e, no entanto
há uma luz
poisada no centro
do seu vivo silêncio de ser
só uma luz
Aberta
para fora
de si.

- como se um pássaro esquecesse no voo
o peso das suas asas.
- como se a memória fosse uma trave antiga
na casa estagnado dos hábitos.
- como se, algo te dissesse e fosse uma voz
derradeira no cálice mais translúcido do corpo
onde o som maduro do silêncio
te chama - em chamas - verdadeiras na cor
e tu estás longe ou perto nos olhos

divagados em ti.


E então, nem o ouro
nem a prata
porque há-de uma vida luzir?



28-Set.2007

28.12.15

Cheguei hoje ao Tarrafal…


 
cheguei hoje ao Tarrafal. A viajem em “ayacer”* demorou-se, com vizinhos  sonolentos como eu, o meu grande malão lá atrás cheia de pedras preciosas, jóias de ouro muitas e de prata algumas, N riqueza, a mala pesadíssima lá atrás encostada a um porco branco que às vezes rosnava para o silêncio dele próprio e o barulho do veículo pela estrada acima que nem uma seta q.b. dentro do nevoeiro que às vezes se esquecia de o ser, e então havia montanhas verdes, casas perdidas sozinhas por lá, onde me apetecia morar.
 

 
* pequena camioneta.
 
 
(Cabo Verde)

pequenas sabedorias

6.12.15

há nevoeiro na estrada e a ferida voltou




há nevoeiro na estrada e a ferida voltou alastrar. Com crisântemos carregados de aromas para os lados onde se abre o sol caído entre nós.

Não é Inverno nem é Verão é outro o tempo da espera e da esperança, entre as árvores com história e as rochas escolhidas pelo mar.

Só na espuma das noites caiem  pérolas nas visões.

A Longa Estrada

 
Imagem : J. A.M.

1.12.15

Sentimentos Ilhados


 
O céu cheio de manchas cinzentas umas mais outras menos escuras sobre um fundo que se pressente azul. O Monte Cara pousado na sua lonjura pensativa e sempre tão presente na alma de cada mindelense. O aroma nostálgico do Ser de uma ilha com as raízes mergulhadas no oceano Atlântico, os sons de uma morna abrindo a noite como quem pede licença para entrar, mas já se instalou suave e inteira abrindo os braços a quem quiser estar, a menina de camisa encarnada e mini-saia-azul abertamente com as coxas de ébano demoradamente nuas e brilhantes até um determinado ponto inexacto, os 2 amigos calados & unidos a uma garrafa de grogue, a criança ainda de colo de camisa cor-de-rosa e 4 totós verde-alface no cabelo encarapinhado a chupar uma manga pela boca adentro e uma gota docemente a cair-lhe pelo queixo até à mão naturalmente aberta da mãe absorta aos sons do cantor, unindo-nos a todos num só lugar e depois lá fora os ruídos dos ilhéus que vão e vêem dos seus destinos circulares, e ali fora na estrada alguém vai sentado de lado sobre uma bicicleta que desliza sorrateiramente pelas azáguas* a fora sem darmos por isso

 

*Em crioulo: poças de água da chuva

(Cabo Verde. Mindelo.)