José Alberto Mar. Com tecnologia do Blogger.

30.6.23

SOMBRAS ACORDADAS

 

Pintura: J. A. M.

 

(ao Victor Mendes)

 

Está um dia quente e quanto ao resto é indefinito. Podi tchobi! ...óh podi ca tchobi! ...Deus qui sabi? (1)
Estou sentado na varanda do meu quarto na Residencial Sol Atlântico, com um padjinha(2) amornecido entre os dedos e a pastar o olhar pelo murmurinho geral.
Uma negrinha aí pelos 3 anos brinca na Praça Alexandre de Albuquerque com uma boneca, enquanto a mãe sentada por detrás de uma tendinha, olha à volta como se nem esperasse cliente. Tem à venda rebuçados chocolates amendoins tabaco fósforos, coisas claramente várias & agrupadas numa ordem naturalmente colorida.
Aproximei-me da circunstância e pedi à Sr.ª um pedaço de rapé que embrulhou muito delicadamente num pedaço de jornal, kela é kantu?(3) Ela lá disse com um sorriso morabi(4) enquanto eu continuava atento à menina toda entretida a pentear com os seus próprios dedos, os longos cabelos loiros da barby, comprada com certeza numa das muitas lojas dos chineses por aqui.
De repente, olhou-me e demorou-se como quem se dá conta de um rosto com a pele igual à do seu bebé. Apeteceu-me dizer-lhe algo, mas para além do sorriso cúmplice e desairoso as palavras ficaram-me embarcadas na garganta. O que que eu lhe poderia dizer acerca das infindáveis cores deste mundo e dos homens que separam & dividem tudo?
Ajoelhei-me até aos seus olhos límpidos de todo, peguei-lhe nas mãos juntas, dei-lhe um beijo sentido na testa e senti-me perdoado.
 
 
Quando me voltei, tinha os olhos marejados, creio que pela penumbra densa do nevoeiro que descia, inclinei-me para a rua 5 de Julho em direção à “Gruta” (5) do Neilito, enquanto a noite se instalava na cidade pareceu-me ouvir o eco dos ritmos de um pilão(6) celestial, algures. Os sons acompanharam-me até ao final do jantar e levaram-me pela noite adiante onde, mais uma vez, me deixei perder pelos caminhos de deus, entre estrelas descidas luas abundantes e várias pessoas que se tornaram amigas pelas naturais leis das luzes.

 
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(1)  “Talvez vá chover, talvez não, só Deus sabe.” (crioulo do Sotavento).
        (2)    Cigarro de erva medicinal, elaborado manualmente.
(3)   “Quanto custa?” (crioulo do Sotavento).
(4)   “Amável, afável, atencioso(a), delicado(a), gentil, simpático(a)”. A morabeza é tida pelos cabo-verdianos como algo difícil de traduzir (como a palavra saudade em português) e exprime um sentimento tipicamente cabo-verdiano, análogo à osprindadi na Guiné-Bissau.
(5)   Tasca.
(6)   Utensílio feito de madeira, idêntico ao almofariz, com uma altura média de 60 cm, utilizado para moer alimentos com um pau de madeira mais rija, e com a extremidade arredondada (mão do pilão).


 (Cidade da Praia. Ilha de Santiago. Cabo Verde)


- in, o Livro "lusófono" O OURO BREVE DOS DIAS ". Autor: J. A. M. -


26.6.23

encontros

 

Pintura: J. A. M.


deixo que as tuas mãos se aproximem
entre a concha das minhas
múltiplas mãos
abro-te as minhas portas
onde o teu jardim entra inteiro.


( J.A.M.)

18.6.23

Divagação em Gaibu

Pintura. J. A. M.

 
A varanda é branca com o sol estampado ainda por cima e ao lado há o azul-cobalto das águas do mar e do outro, as muitas árvores da Mata Atlântica emaranhadas nos seus verdes a erguerem uma montanha até à beleza de um imenso céu, onde muitos pássaros coloridos até nos sons que espalham me esquecem nos seus voos
e só muito tempo depois, felizmente
acabo por cair em mim.
 
Aqui ao lado, as folhas das palmeiras continuam penteando a aragem que corre atrás de si e por vezes alarga-se até à mesa e leva-me as outras folhas as palavras, o que me importa?
Na rua as pessoas passeiam-se devagar no meio do tempo. Saboreiam os encontros, param aqui e acolá, trocam poucas frases, poucos gestos, coisas simples, como um sorriso cúmplice na caminhada, já é Tanto!
1 pescador idoso, de boné ainda vermelho e corpo fechado, está esquecido ou estará a lembrar-se, a olharolhar o mar como se lesse um texto.
 
 
Há em tudo uma paz impossível aproximando-se provavelmente a um sopro distraído de deus no meu olhar.
 

 

(Gaibu. Estado de Pernambuco. Brasil.)


- in, O OURO BREVE DOS DIAS -

(  Livro de Contos "lusófonos". Autor:  José Alberto Mar)

14.6.23

Palavras, palavras, por vezes

 

Pintura: "O Sol no Coração". J. A. M.


Palavras, palavras, por vezes cansado das palavras fico completamente à escuta, vazio por dentro, parado, virado para fora. Como se o meu corpo fosse uma harpa aberta aos sons que passam. E então há um outro sol a cobrir as formas do Mundo, o grandioso coração do Universo começa a bater como um pêndulo maduro, a água no corpo a murmurar lá no fundo como nos oceanos e a beleza epidérmica das coisas à volta aparece sem nomes, a vida total continua a transformar-se sem eira nem beira.

E então, vejo que nada em mim é o que sei e sinto, nada em mim é apenas uma ilha a desenhar horizontes de palavras, letras que se juntam para criarem um círculo um entendimento, nada disto tudo faz sentido, sem a Luz e a vastidão da Terra com sementes e as flores e as plantas e as árvores e os frutos e as aves e as pessoas, as pessoas a encherem-nos os dias e as noites.

 

 (Ilhas Desertas. Madeira. Portugal)

 

in, O Ouro Breve dos Dias.

 

J.A.M.


5.6.23

uma doença de sombras

 

Foto: J. A. M.


havia uma doença de sombras. Entranhadas no ar, nos ritmos dos dias, nas pessoas que deambulavam entre estes.
Mas as sombras eram como todas as sombras:  germinadas por uma luz. Esta luz era cega, distante, não se via. Apenas alguns a pressentiam. Por dentro, era por dentro que novas sementes germinavam e quando cresciam o suficiente toldavam os olhares. E algumas pessoas começavam a ver novas flores que as outras não viam, pois havia uma doença de sombras.

Entre a vida e estes dias sonâmbulos instava-se um esquecido tempo sem nomes verdadeiros ou com demasiados nomes. Aparências. Muitas notícias em algazarra. Sinais para as pessoas se ampararem.
Alguns mais desesperados matavam-se. Outros resignavam-se, á espera. A morte, apesar de sempre presente, disfarçava-se de esquecimento. Andava-se de um lado para outro, através de distrações perenes. No fundo, ninguém se via nem via os outros, porque havia uma doença de sombras. No entanto, alguns vislumbravam o que parecia ser natural. Falavam destes tempos de mudanças, sem ninguém os escutar. Acomodavam-se num silêncio de ouro que crescia somente para eles. Aparentemente. Outros ainda gritavam sem ecos. Aparentemente, pois tudo era um vasto Mundo cada vez mais ligado.



( J.A.M.)


1.6.23

Já fui ao Paraíso


 

Há coisas do diabo. Já fui ao paraíso.
E voltei.
Estava já quase acordado no meu quarto do Hotel Europa, quando a Ana e a Joyce abriram a porta em leque cheias de sorrisos floridos e me convidaram para dar um passeio pelas franjas de Gaibu. Lá me levantei um tanto ou quanto aturdido pelas caipirinhas da noitada anterior, mas depois de beber o coco fresco que me atiraram de chofre fiquei logo fino, vesti a t-shirt e os calções de sempre e lá fomos, que nem 1 trio harmonia pelo dia adiante.
Passámos pelas ruínas do Forte São Francisco Xavier, eram pedras amontoadas por ali pelas leis do acaso e com alguma parcimónia sobrava a placa, livrei-me das alpercatas (1) na linda praia de Calhetas, onde vi ondas debruçadas sobre a própria espuma fresca nos meus pés, depois de serem verde-esmeralda e azul-turquesa, e também vi uma foto do jovem Eusébio no bar lá do sítio, ao lado de N ilustres que por ali tinham po(u)sado algures, ao longo dos seus destinos.
Depois continuámos a caminhar por entre árvores (2), plantas e flores de muitas cores e aromas vários, até que a incerta altura num morro inesperado e cheio de um céu azulmuitoazul, vi uma tabuleta tosca de madeira com a palavra: “PARAÍSO”.
As minhas companheiras apanharam o meu ar aparvalhado e eu apanhei-as a sorrirem apenas cúmplices.
 
O que havia a dizer?
 
Lá descemos entretidos com os pés de cada um, a saltitarem de pedra em pedra, até desembocarmos numa espécie de praia com a água muito transparente e a areia prateada pelo pôr-do-sol que se diluía pelas águas até ao esquecimento.
Sentámo-nos a olhar e a escutar o mundo à volta através daquele ponto de vista, dentro do ponto de vista de cada um e os três juntos com as 6 vistas desarmadas, despidas, deliradas.
Já não sei, e pouco me importa, o tempo (o tempo?...) que poisámos ali, a respirar aquele lugar tão belo e simples irrealmente em tudo. Lembro-me vagamente que as palavras eram coisas a mais e a ninguém lhe passou pela cabeça falar de tal assunto.
 
Quando regressámos a Gaibu, numa camioneta que ainda circulava, já lá estava instalada uma noite claramente aberta à nossa festa.
 
 
 
(1) Sandálias de couro.
(2) Manacás, mulungas, ipês, com as suas flores de ouro, algumas das muitas árvores ainda existentes e caraterísticas da Mata Atlântica no local.



( in, O OURO BREVE DOS DIAS, pág. 10)

28.5.23

( aos leitores)

Foto trabalhada. J.A.M.

 
Entre tantos arquipélagos
eis a sombra da espera
enquanto as minhas âncoras acendem
as raízes do mar por onde indago
o céu & a terra
e este sentimento obscuro e fundo
que me entrelaça a ti.

25.5.23

tudoestáligado

Pintura: J. A. M.


abre-se uma porta
abre-se uma janela
abre-se a alma
quando a casa está vazia
e entro descalço com os pés no chão
da Terra
a pródiga energia que volteia
os corpos e as águas fundas
de todos os oceanos: o que sou
cresce como uma árvore
e o tempo e as formas em tudo
são sonhos que sonham
ter asas.


( 1º rascunho.4-03-2023)

21.5.23

Imagens do lançamento do livro de contos: O OURO BREVE DOS DIAS.

(contos escritos em Portugal, Cabo Verde e Brasil).

Apresentação do poeta narrador: Thomas Bakk.









(Evento integrado na Exposição de Artes Visuais, SOMBRAS DE UM FAROL~SHADOWS OF A LIGHTHOUSE)


Local: Espaço QuadaSoltas

Rua de Tânger, Nº1281-4150-721, Porto

E-mail: quadrasoltas@gmail.com .Tel.965 637 472.

 

18.5.23

Estrelas Apagadas

 “ Cego do Maio"(1817 - 1884Póvoa de Varzim.  Foto: J. A. M.

    
     Já a noite tinha sido iniciada, os pescadores juntos sentados calados curvados olhavam presos por um fio emaranhado de leves e ondulantes pensamentos o horizonte, como quem lia 1 texto antigo.
    Entretanto as nuvens de um lado para o outro, fragmentariamente orquestradas pelo seu próprio destino, lá iam impavidamente diferentes. Nada se cruzava e tudo estava ligado.
     Os barcos continuavam a baloiçar o cais. O mar sempre estivera ali como se fosse eterno. Como um eco longínquo que ainda perdura pelo poder dos olhares de muitas gerações.
    E os pescadores aguardavam como quem espera e também não, a hora da partida. Em casa os filhotes mais novatos choramingavam por comidas diferentes e as mães afagavam-lhes os cabelos, com um sorriso esboçado junto ao aconchego do útero.
 
    Os pescadores, disse-me um dia um amigo vagabundo nas viagens, viraram estátuas fixas e ali estancaram para o gáudio dos turistas que acudiam aos magotes e as crianças agora pediam moedinhas com uma vida inteira moribunda nos olhares.
 
 
(Póvoa do Varzim. Portugal)


 
P.S. Texto do Livro de Contos,  escritos em Portugal, Cabo Verde e Brasil: O Ouro Breve dos Dias”. (2021)


 

 ( J. A. M.)

 

17.5.23

Lançamento do livro de contos: O OURO BREVE DOS DIAS (escritos em Portugal, Cabo Verde e Brasil).

 


Apresentação do poeta narrador: Thomas Bakk.

(Evento integrado na Exposição de Artes Visuais, SOMBRAS DE UM FAROL~SHADOWS OF A LIGHTHOUSE)


                                              Dia 20 de Maio, às 16 h.

Local: Espaço QuadaSoltas
Rua de Tânger, Nº1281-4150-721, Porto
E-mail: quadrasoltas@gmail.com .Tel.965 637 472.

 

Bibliografia poética anterior:

 

- O Triângulo de Ouro (Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores – 1987), Editora Justiça e Paz, Porto, 1988.
 
- As Mãos e as Margens, Editora Limiar, Porto, 1991.
 
- A Primeira Imagem, Editora “Sol XXI” – Lisboa, 1998.

 

 


9.5.23

SOMBRAS DE UM FAROL ~ SHADOWS OF A LIGHTHOUSE


Galeria " Espaço QuadaSoltas ". Rua de Tânger, Nº 1281 - PORTO
E-mail: quadasoltas@gmail.com. Tel. 965 637 472
~

COMENTÁRIOS CRÍTICOS (Resumos):


 “(…)Assim,  na obra plástica de José Alberto Mar ,harmonizamo-nos perante arquétipos universais de raiz formal geométrica, surgidos da metamorfose dos signos num processo de morfogénese que progressivamente se tem vindo a acentuar no percurso ontológico da obra do artista, onde busca e revelação surgem indissociáveis.(…)
Mas, mais uma vez, também se nos afigura que o cunho inconfundível da arte de José Alberto Mar flui naturalmente da matriz existencial do poeta, pintor – e visionário - e de uma radical liberdade do ser e do estar como assumida celebração da vida.

 (Poetisa Sofia Moraes)

                                               ~ ~ ~

“Arte Futura, no seu melhor. A sua arte é tão única e futurística. A arte do futuro vive hoje.”

“Future Art, at it's finest .Your art is so unique and futuristic. Future art lives today.”

(Michael Iva - Chicago, U.S.A.)

~ ~ ~

“(…) Na obra plástica e literária de José Alberto Mar - pintor e poeta, de motivações filosóficas, percorre-se num tempo de sensações, durante a energia vital das coisas do Homem, e das marcas que este vai deixando no seu labor (…) Na sua proposta encontramos com alguma facilidade laços de estreitamento que cruzam ou juntam civilizações do oriente com latino americanas, africanas e europeias. (…) São registos que a sua obra espalha, e nalguns casos com profunda evidência, sendo até comparáveis com as formas de padrões matemáticos e geométricos, desenvolvidos de há muito na China, na Mesopotâmia (…)  A obra na relação com o espectador cria um espaço orgânico cujo arquétipo é biológico, celular e vital (…)”


(Doutor Rui Baptista)

 


3.5.23

Enquanto há os mortos verticais em meu redor

Pintura. J. A. M.

 

Enquanto há os mortos verticais em meu redor
Enquanto também há seres acordados, outros iluminados
Enquanto há uma luz do Sol que vem das trevas
Enquanto me sinto a respirar o halo silencioso das árvores
o entrelaçado canto enlevado dos pássaros que não vejo
nesta viagem pela noite escura
Sinto-me presente e feliz!


(J.A.M. - Abril-23 )

 

28.4.23

Exposição de Pintura

 


SEM MARGENS


por vezes, abrem-se outras luzes, outras cores
outros sons dentro
como acontece na boca das fontes
e é por aqui que algo em mim é mais humano
entre esta sagrada Terra e as estrelas á mão de semear
entre tantas margens os tambores celestes batem e
rebatem no meu coração.
 

 
Outras vezes vem um outro sol, outro sal, outra luz
da cintura dos astros ou do fundo da Terra
descendo, subindo, entrando, aclarando
a cabeça que já não pensa
pois já é outra a resposta que cintila
no esquecimento do olhar
onde caio em mim, como uma gota de água
no mar dentro dos dias todo o tempo é redondo
e reparo nas duas mãos como se fossem
10 os novos caminhos
e no entanto, são tantos e tantos
que me volto a calar.


( J. A. M.)


 
 


25.4.23

Poema em saldo

Made in Portugal. (Pintura. J. A. M.)

 
uma data que regressa sempre
transparente à cabeça
um sino pendular nas cavernas do corpo
e então escrevê-lo é abrir as potências
do sangue, dos pés até à raiz
dos cabelos, deixar renascer a vida
circular dos dias
pelo silêncio poderoso
se fundamenta um olhar
um sonho uma estátua invisível
dentro da memória
ordena-se o esquecimento
mantendo todos os dias
a respiração deste poVo
entre muitos e muitos horizontes.



José Alberto Mar


22.4.23

RIO SEM MARGENS ( Exposição de Pintura)




Tríptico ás Imagens

 

Por vezes, alguém põe um dedo na ferida. Quero dizer: alguém acorda a sombra geral dos seus nomes e os nomes mergulham nos ritmos do sangue e logo as mãos crescem para os lugares e os lugares crescem com elas e tudo fica mais Alto. Há quem passe, olhe de lado e continue a sua vida. Outros há que passam e se detêm por um pormenor mais chamativo.

Claro que todos os lados, todos os nomes são pretextos. E os lugares também. Nascemos e morremos por uma graça indomável perdida no tempo. Andamos às voltas disto tudo enquanto por dentro acordam e adormecem as sementes povoadas pelos estranhos frutos de uma sede sem fim.

Vozes e imagens que cantam a Vida e o exemplo dos milhares de sóis mesmo sabendo-se que para outros olhares, há um abismo memorial nas cabeças uma outra idade outra boca menos cercada pelos dons dos dias, na transformação dos corpos.

 

(in, “A Primeira Imagem “, J. A. M.)

16.4.23

É PRECISO ESCOAR O DIA

 

Uma mulher negra, com um olhar divagante, coberta de panos amarelos sentada num banco de madeira pintado de verde, no jardim da Praça. No banco ao lado um Sr. de camisa e calças vermelhas, estirado num banco também verde à sombra de outra acácia ainda mais verde.
O sino do relógio vai dando badaladas bem compassadas ao ritmo do calor hoje mais abafado, será que vai haver tchuva?
Passam mulheres e mulherzinhas agrupadas, com as bundas arrebitadas todas janotas em direção à igreja já apinhada de crentes para a missa domingueira. Espreito discretamente e parece-me haver ali um fervor amornecido, uma entrega naturalmente física à devoção, neste caso católica, mas a fé lá no fundo terá algum nº de porta?
No jardim, um casalinho namora espreguiçadamente num outro banco de cimento já sem cor. Ela deitada sobre o colo ali à mão de semear e ele com as mãos dedilhadas no corpo da paixão. No chão quente do dia as suas sombras estremecem sem eles darem por isso. Evolam-se pelo ar formas de tesão e paixão, cores encarnadas vivas que até acordam as flores sonolentas à-volta.
 
Volto a dar 1 longo passeio pelo Plateau(1), sem deixar de passar pelo mercado onde as cores e os aromas levantam os sorrisos das vendedoras. E volto ao lugar. A meu lado, encostado à fonte central com uns barulhinhos de cascata, está um homem com o cachimbo adormecido na mão e um ar de quem já não espera nada e também não se rala com isso. Talvez esteja em plena divagação do seu ser, talvez seja mesmo o seu modo de estar, talvez a luz do seu olhar esteja toda estancada no pequeno sol de dentro, mas o que sei eu?
Passam mais meia-dúzia de moços todos coloridos e alegres, entretidos com eles próprios em direção aos finais da missa, na igreja matriz de traça colonial há dois séculos ali plantada. É a hora das moças saírem e acontecerem luzinhas entre os olhares.
 
Ouço o barulho de uma moto bastante na Avª Amílcar Cabral e leva atrás, de reboque, um gajo de patins a deslizar por ali como gente grande, lá vai ele a espalhar o seu imenso sorriso branco pela cidade adiante

Adiante, adiante que é sempre tempo para se ser feliz.

 
 
(1) Zona histórica central da cidade da Praia.

 
-  Ilha de Santiago. Cabo Verde -

 
(in, Livro de contos.: O Ouro Breve dos Dias.2021.
Escrito em vários locais de Portugal, Cabo Verde e Brasil.)
 

7.4.23

Bastou um sorriso

Caminhos da Vida. J. A. M.
 

No meio das ruas da cidade, por vezes
a surpresa de um coração desprotegido
cercado por uma luz sem nomes.

E um  rosto caído em cascata
no olhar desnudado como se
uma estrela longínqua
quisesse falar
 
Bastou um sorriso de alguém que passou.

 
Por vezes, a inesperada vida deslumbrada
por um encontro ao acaso, num dia qualquer
onde arde a fulgurante e permanente
chama do Mundo.



( J.A.M.)
 

4.4.23

O Olho de Agamotto

Pintura: J. A. M. 

Há o sol e as matérias primas
dentro do sangue nos corpos
há os dias e as noites recolhidas,
submersas até aos dedos
e ainda há o Mundo e as pessoas
os animais, as árvores, a Natureza
e a vastidão da respiração
que vem do coração da vida
seio de idades invadidas por tantos rostos

e há instantes imprecisos em que somos quase
inteiros
no útero de tudo onde as vozes se instalam
mas só às portas soltam as suas âncoras:
as palavras, as sombras que agora vos entrego.
 
 
O olho do mundo dança-me na cabeça
ao sabor das luzes que giram
na alta nudez sem nome.



( J. A. M. )