José Alberto Mar. Com tecnologia do Blogger.

24.2.23

Pintura: J. A. M.


 (…) é preciso construir um tema que nasça do fundo, uma linha que se prolongue ao mesmo ritmo, repetir o hábito que vem de si próprio e esquecê-lo para haver um outro, escutar o rumor do seu íntimo rio apenas só seu, caminhar em companhia com os sonhos que nos acordam ao longo da idade. 
Enobrecer os dias, recriar o fogo, iluminar as margens da viagem
.


( J. A. M.)

 

1.2.23

Uma flor no asfalto

Pintura: J. A. M.

 

Enquanto caminho pelas ruas desta cidade, ao sabor da leve aragem que me acompanha re/paro por perto no aroma espalhado de uma visita a que não (me) tinha ligado e é saboroso vislumbrar
agora
minúscula flor encantada só em si e amparada pelas significantes folhas verdes onde o sol tranquilamente  se desfaz em prata.
Guardo a lição no bolso da camisa junto ao peito e continuo a caminhar para onde ainda não sei


( Porto. J.A.M.)

 

20.1.23

Pedaços do céu

Pintura. J. A. M.


de manhã, quando as aves ainda parecem sonhos
e já as claridades esvoaçam
abrindo as portas e as janelas
de encontro aos olhos de quem acorda

e os rios de ouro abrem as vozes
à procura dos mastros humanos
onde há gente viajada em nascentes

e a Beleza do mundo é 1 presente simples
e tudo se ampara nos muitos eus
que devagar se unem
enlaçando a infância, o futuro e o agora

de manhã quando algo estala o silêncio

instaurado e já ouço
o cantarolar aceso dos pássaros
Felizmente vivo
mais um dia.


(J. A. M.)

13.1.23

Onde o Sol é mais perto

Pintura. J. A. M.

às vezes à noite, pego no bloco pego na caneta. Fico assim, horas a fio a olhar para o céu, depois a incerta altura, desço o olhar
agora:

1 pirilampo aqui outro acolá na espessura da noite por detrás da sebe deste jardim há 3 sobreiros unidos com troncos rugosos onde a cortiça respira e cresce sem darmos por isso e as folhas todas juntas formam uma cabeleira que estremece e dança, muito espaçadamente, com a aragem que sopra dos lados do mar enquanto pedaços de algodão dos álamos esvoaçam e uma sisão * algures espalha as pautas.

 De repente, a chuva parou.
Gotas de água escorrem de folha em folha e depois apagam-se no chão onde as raízes das plantas absortas se abrem aos desejos da sede. E as folhas cintilam sob o peso da luz que cai dos candeeiros. E são belas assim, nos seus verdes flamejantes contra as obscuridades à volta. Na superfície azulada de um pequeno lago provisório, estranhamente ondulado, está a lua estampadamente enorme.



* Ave considerada Vulnerável, pela organização BirdLife International.


 (Cabo de São Vicente. Algarve. Portugal) 

7.1.23

Pintura. J. A. M.


 O olho do mundo dança-me na cabeça
ao sabor das luzes que giram
na alta nudez sem nome.


( J. A. M.)


2.1.23

2023

(Pintura): Novo Ano. Novo Mundo

 

uma data que regressa sempre
todos os anos

um sino pendular nas cavernas do corpo
e então escrevê-lo é abrir as potências
do sangue, dos pés até à raiz
dos cabelos, deixar crescer
a vida circular dos dias
pelo silêncio poderoso
se fundamenta um olhar
um sonho uma estátua invisível
dentro da memória
ordena-se o esquecimento
mantendo sempre a respiração do Mundo
entre muitos e muitos horizontes.


( J. A. M. )


 

23.12.22

alianças

Pintura. J. A.M.

 

Sei como os universos estão cheios de estrelas
de ouro breve nas suas viagens
e um coração de ouro nunca tem preço
(eu sei) como o teu sol também é o meu
também sei que por onde caminhas
é o (mesmo) lado só teu 
do lado que também é o meu.


(J.A.M.)

17.12.22

O Farol

( Farol. J.A.M.)

 Alguém disse já não recordo, pois foi num campo de batalha e o ribombar das bombas e dos seus ecos na altura, faziam-nos surdos. A outros, faziam-nos cegos. A outros ainda, faziam-nos mortos. 
Mas a frase em questão, no meio daquele inferno encantou-me o lugar e por momentos caí num silêncio sem tempo, que me trouxe a casa de meus pais, longe muito longe, onde havia um jardim. E a frase era assim: não corras atrás das borboletas, cuida antes das tuas flores que elas virão até ti (1).
 
Ainda hoje, passados séculos, por vezes em dias ou noites em que tudo parece estranhamente desolador, me acontecem as imagens bem nítidas que esta frase levanta à frente do meu olhar.
E então, algo em mim se transforma e tudo à minha volta também.
E um pequeno e incógnito farol aflora por dentro.



(1) frase atribuída, a D. Elhers, em tradução livre.


( J. A. M. )

 

13.11.22

Estremece a estrela que em mim vive

Pintura: J. A. M.


Estremece a estrela que em mim vive
naturalmente aberta
á escuridão
e nos 2 olhos cintila
o véu do instante, a aparência maior
do que é superfície e aí se afoga
pois na multidão dos dias a vida
tornou-se mecânica.

Vejo em todos os gestos um silêncio amparado
pelo silêncio que aspiro
o lugar onde qualquer semente pensa
sonhando com tudo
pois nada do que é fruto
acontece sozinho.

( J. A. M.)

 

 

31.10.22

Na boca das manhãs

Pintura: J. A. M.


O silêncio serpenteia-se nas ondas do ar a boca da noite

abre as flores do coração curva os sons que tem sempre

à mão e o tempo habita-nos mais ao sabermos nos olhos

as sombras que se despedem das árvores onde os pássaros

acolhem os primeiros tons do dia sob o lençol verde

às tantas da manhã pelas cinco e tal ou quase assim começam

a sinfonar uma visão acesa para quem ainda dorme ainda

é cedo ainda há o segredo

de haver um mundo, com tudo sagrado.


(J.A.M.)

 

 

 

 

 

21.10.22

E, no entanto, há uma luz por aqui

Pintura: J. A. M. 

 

e, no entanto
há uma luz
poisada no centro
do seu sereno silêncio de ser
só uma luz
Aberta
para fora
de si

- como se um pássaro esquecesse no voo
o peso das suas asas.
- como se a memória fosse uma trave esmorecida
na casa estagnado dos hábitos.
- como se, algo te chamasse e fosse uma voz cúmplice
no cálice mais translúcido do teu corpo
onde o som maduro do silêncio
te chama - em chamas - alumiadas na cor
e tu estás longe ou perto nos olhos
divagados em ti

E então, nem o ouro
nem a prata

- por onde há-de uma Vida luzir ?

 

10.10.22

um adeus de sombras a voarem

Pintura: J. A. M.

As folhas caiem das árvores
com o peso do Outono
castanhas, amarelas, verdes, vermelhas
às vezes
um adeus de sombras a voarem.

Mudas as árvores abraçam o frio.


( J. A.M.)


 

5.10.22

o meu problema pessoal com as galinhas

 

     Estava no meu cadeirão anti-stress, enlevado sei lá com quê se é que havia tal coisa quando me ocorreu - repentinamente - que afinal tenho uma incerta desavença, pacífica é claro, com as galinhas. Assim à 1ª a coisa não me parece ser grave, mas eu nunca tenho a certeza de nada. E já comecei a cacarejar justificações, até são uns bichos interessantes, quando estão a comer debicam algo no chão tão rapidamente que nem enxergo o quê e depois atiram as cabecinhas para o céu e estão nestas figuras amiudadas vezes. Nos inícios de tais observações eu olhava - imediatamente! - lá pra cima tentando vislumbrar o que era o alvo de tal curiosidade inopinada, pois eu quando como, habitualmente olho para o que está à frente do meu nariz e deixo os céus para as ocasiões místicas. Prosseguindo os já citados cacarejos, também gosto das suas penas, algumas mais, pois vê-se ali a mão da mãe-natureza o deslumbre da luz a desfazer-se em cores.
     Tive uma amiga artesã, das américas do sul salvo erro, que alimentava uma galinha com o intuito assumido de lhe arrancar apenas uma pena de vez em quando, para os seus colares & aquelas obras de arte que lhe davam o pão para a boca. É verdade! Também havia por lá 1 macaco pendurado nas traves da casa, que eram ramos grossos de uma acácia que lhe entrava por ali dentro para lhe oxigenar gratuitamente o ambiente. Uma vez estávamos eu e ela esparramados lá no seu jardim sem cercas que se prolongava por uma floresta a sério cheia de borboletas estonteadas e belos pássaros a esvoaçarem com as suas cores, Tudo junto era bom respirar ali, e então estávamos nós a fazer o nada e aparece o seu filho por aí nove anos se tanto, e deu-me uma lata de coca-cola transformada em cinzeiro para as cinzas do meu fogo no cigarro que ardia alheado disto tudo. O meu preconceito em relação à coca-cola é assumidamente enorme, mas a Brigite sentiu logo a coisa e explicou-me que era a maneira do menino me dizer que gostava de mim e como não tinha mais nada para brincar, costumava apanhar latas no lixo dos Sr.s lá em baixo na cidade e depois transformava-as no que lhe vinha à cabeça e ao coração e, sinceramente, aquilo era uma piquena obra de arte. Olhei para a criança como quem olha para um Deus e os seus olhos eram luminosos e felizes e eu,,,eu também fiquei feliz e com a voz embarcada num nó cego até às lágrimas que contive. A mãe sentiu tudo como só as mulheres sabem e ofereceu-me um chá que dividimos pelos 3.
     Afinal, a bem dizer eu até gosto das galinhas, a maneira como se deslocam com as duas patas indecisas parecem sempre inquietas à toa, mas isso não passa de + uma perceção pessoal, pois suspeito que só vejo aquilo que sou e aí há que ter uma certa parcimónia nas coisas dos julgamentos, juízos de valor, essas lérias.

     São precisamente 5 h. e tal da noite e ainda estou pr’aqui com as minhas irmãs galinhas, que são muitas no meu quintal, sem medos dado que eu não as papo pois adotei a moda saudável de ser vegetariano já faz um tempo que estou sentado à sombra de 1 pinheiro que também habita comigo ali no canto onde lhe deu para estar e dá-me pinhas às vezes pinhões que eu amontoo numa tigela azul e branca da dinastia Ming que tenho na cozinha, foi uma namorada chinesa mesmo da China que m´a deu, o pai era podre de rico, segundo ela, mas fiquei sempre na dúvida se a peça era realmente verdadeira ou não, mas como não ligo a tais valores, o que me agradou foi a sua beleza  singular. À superfície, na epiderme colorida, o branco e os azuis entrelaçados como fios de cabelos ondulados parecem dançar uma música que julgo escutar às vezes, quando o silêncio à volta se fecha e estou muito dentro. Quando acumulo forças suficientes, pego nos tais pinhões às mãos cheias e quebro-lhes as couraças, um a um atentamente, com uma pedra de estimação que tenho sempre à mão de semear para ocasiões mais determinantes.

 

     Depois desta ocasional divagação, retorno à cabeça da pescadinha de rabo na boca que agora com o tempo já é uma serpente a morder a cauda que dá veneno, que também pode ser remédio, tantas vezes se dá este caso há esotéricos que o dizem, e o que eu nesta realidade   pretendia dizer é que elas, as minhas amigas galinhas, têm uma relação íntima visceral com o Sol(1) que eu naturalmente também mantenho com todo o apreço deste mundo e dos outros, mas também gosto das estrelas e da lua e dos silêncios azuladamente brilhantes quando o são outras vezes nem por isso acontecem estas circunstâncias de 1 gajo estar ~ graças a Deus ~ a respirar mesmo vivo no meio destas montanhas onde o meu patrão sou eu não.

 

 

(Foz-Côa. Douro. Portugal)

 

 

(1) As galinhas a que me refiro, são umas felizardas parolas nas aldeias pois em relação às suas irmãs macambúzias & amordaçadas de todo (como os irmãos humanos) fechadas em infernos imaginados por desalmados, onde claramente desconhecem o que é a noite. Foi através do genuíno comportamento das 1ªs que surgiu o ditado popular: “fulano ou sicrano deita-se com as galinhas”. Isto é, esse alguém mal se põe o sol já está deitado a dormir, caso não sofra de insónias. Interessante!  (ocorreu-me agora). Nos meus tempos de intelectual puro & duro, deu-me para estudar com muito afinco e múltiplas pesquisas no terreno, o pano de fundo ontológico destes animais, digamos assim, e nunca apanhei uma só galinha acordada, com insónias, ao lado da fileira em que se costumam organizar, mui meticulosamente, para meu espanto na altura.

 

 

~ in, O Ouro Breve dos Dias. Livro de contos.2021. J. A. M. ~

26.9.22

A Porta das Imagens

"Portal". Exposição SOMETHING is CALLING

 Por vezes, alguém põe um dedo na ferida. Quero dizer: alguém acorda a sombra geral dos seus nomes e os nomes mergulham nos ritmos do sangue e logo as mãos crescem para os lugares e os lugares crescem com elas e tudo fica mais Alto. Há quem passe, olhe de lado e continue a sua vida. Outros há que passam e se detêm por um pormenor mais chamativo.

Claro que todos os lados, todos os nomes são pretextos. E os lugares também. Nascemos e morremos por uma graça indomável perdida no tempo. Andamos às voltas disto tudo enquanto por dentro acordam e adormecem as sementes povoadas pelos estranhos frutos de uma sede sem fim.

Vozes e imagens que cantam a Vida e o exemplo dos milhares de sóis mesmo sabendo-se que para outros olhares, há um abismo memorial nas cabeças uma outra idade outra boca menos cercada pelos dons dos dias, na transformação dos corpos.

 

(in, “A Primeira Imagem “ , J. A. M.)

21.9.22

A propósito da Exposição de Artes Visuais: "SOMETHING is CALLING". (Inauguração a 24-09-22)


~ alguém encontra algo porque escutou  ~


alguém passeia-se algures por caminhos e paisagens onde há pedras pelo chão e acontece-lhe curvar-se de repente, por algo que o chama sem dar-bem-por-isso e há um diamante entre as suas mãos, o olhar turva-se pelo brilho que o sOl, atento a tudo onde há vida, lhe oferece no mesmo instante e depois

há quem veja logo ali um presente, há quem não dê conta do vislumbre que lhe aconteceu e continue apegado aos seus hábitos, atirando o pequeno seixo para as águas de 1 rio que desliza por ali no seu natural ocaso indiferente a tudo isto.

Os hábitos escravizam, tornam-nos cegos.

Todos os dias acontecem coisas assim, parecem banais porque são diárias, mas não o são, não. Nada é banal nesta vida que nos está acontecendo.

E por aqui os diamantes não têm quaisquer preços, são iluminadas fontes metafóricas, criadas pela infindável sede que também habita nos profundos lençóis da Terra:


- Quanto demora uma idade a ser luz?

( J.A.M.)