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Pintura: J. A. M. |
(ao Victor Mendes)
Está um dia quente e quanto ao resto é
indefinito. Podi tchobi! ...óh podi ca tchobi! ...Deus qui sabi? (1)
Estou sentado na varanda do
meu quarto na Residencial Sol Atlântico, com um padjinha(2) amornecido
entre os dedos e a pastar o olhar pelo murmurinho geral.
Uma negrinha aí pelos 3 anos
brinca na Praça Alexandre de Albuquerque com uma boneca, enquanto a mãe sentada
por detrás de uma tendinha, olha à volta como se nem esperasse cliente. Tem à
venda rebuçados chocolates amendoins tabaco fósforos, coisas claramente várias
& agrupadas numa ordem naturalmente colorida.
Aproximei-me da circunstância
e pedi à Sr.ª um pedaço de rapé que embrulhou muito delicadamente num pedaço de
jornal, kela é kantu?(3) Ela lá disse com um sorriso morabi(4)
enquanto eu continuava atento à menina toda entretida a pentear com os seus
próprios dedos, os longos cabelos loiros da barby, comprada com certeza numa
das muitas lojas dos chineses por aqui.
De repente, olhou-me e
demorou-se como quem se dá conta de um rosto com a pele igual à do seu bebé.
Apeteceu-me dizer-lhe algo, mas para além do sorriso cúmplice e desairoso as
palavras ficaram-me embarcadas na garganta. O que que eu lhe poderia dizer
acerca das infindáveis cores deste mundo e dos homens que separam & dividem
tudo?
Ajoelhei-me até aos seus olhos
límpidos de todo, peguei-lhe nas mãos juntas, dei-lhe um beijo sentido na testa
e senti-me perdoado.
Quando me voltei, tinha os
olhos marejados, creio que pela penumbra densa do nevoeiro que descia,
inclinei-me para a rua 5 de Julho em direção à “Gruta” (5) do Neilito, enquanto
a noite se instalava na cidade pareceu-me ouvir o eco dos ritmos de um pilão(6)
celestial, algures. Os sons acompanharam-me até ao final do jantar e levaram-me
pela noite adiante onde, mais uma vez, me deixei perder pelos caminhos de deus,
entre estrelas descidas luas abundantes e várias pessoas que se tornaram amigas
pelas naturais leis das luzes.
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(1) “Talvez vá chover, talvez não, só Deus sabe.”
(crioulo do Sotavento).
(2) Cigarro de erva medicinal, elaborado
manualmente.
(3)
“Quanto custa?” (crioulo do Sotavento).
(4)
“Amável, afável, atencioso(a), delicado(a),
gentil, simpático(a)”. A morabeza é tida pelos cabo-verdianos como algo difícil
de traduzir (como a palavra saudade em português) e exprime um sentimento
tipicamente cabo-verdiano, análogo à osprindadi na Guiné-Bissau.
(5)
Tasca.
(6)
Utensílio feito de madeira, idêntico ao
almofariz, com uma altura média de 60 cm, utilizado para moer alimentos com um
pau de madeira mais rija, e com a extremidade arredondada (mão do pilão).
(Cidade da Praia. Ilha de
Santiago. Cabo Verde)
- in, o Livro "lusófono" O OURO BREVE DOS DIAS ". Autor: J. A. M. -