José Alberto Mar. Com tecnologia do Blogger.

16.6.24

Uma ciência que ainda é mistério

Pintura. J. A. M.

 

A noite prolonga-se nas águas do corpo. Há uma ciência minuciosa por dentro. Dentro das grutas, dentro das ondas contra as impávidas rochas, dentro da espuma luminosa e sombria.
Uma ciência que ainda é mistério.
 
Lá fora, o silêncio inaugurado sob a pouca flamância das estrelas.
Fechadas as portas do sono, alguém escreve, enquanto não acorda do sonho que o embala na vida.


( J. A. M. )

14.6.24

O Universo do Amor e o Universo do Medo

Pintura. J. A. M. 



Por aqui, neste mundo, à minha volta: 2 universos, apenas. O Universo do Amor e o Universo do Medo.
Cada um com inúmeras portas e janelas e nomes encobertos e descobertos por onde se entra e sai e se volta a entrar e a sair.
Diariamente, luminosamente, noturnamente.
O círculo a levantar-se em espiral, ainda a sobrevivência do macaco nas demonstrações da luz ou a luz derramada em forma de cruz.
Tudo crenças.
Tudo inscrito, tudo escrito em todos os lados, dentro das cabeças, na água oceânica do interior dos corpos, nas paredes inventadas por fora e por dentro, nas alegrias e na dor.

 
- De que lado crescem os teus dias ?


(J. A. M.)

3.6.24

auto~retrato


um vento leve
vindo do mar
acorda as velas do barco

Mais uma viagem se aproxima.


( J. A. M.)

Primavera

PORTA  de  LUZ. Pintura: J. A. M.


 

As imagens tocam-me, mas não sei
se vejouço ou então só em parte
estarei vivo.

O ar habita-nos por dentro e por fora.
Ao sabor de fronteiras incertas. Às vezes
outro sol nasce em nós.

E então penso:
as flores em Maio dão-me para olhar.


( J. A. M.)

 

 

 

 

25.5.24

ELIPSE PARA OS OLHOS

 

Pintura. J. A. M.


Em cada gesto
um ofício sem idade
dizendo os corpos em sobressalto
entre as coisas circulares da vida.
 
E quem já esteve em muitos continentes
principia e acaba olhando o Mundo
pelas suas formas
e aí morre qualquer hábito
e a vastidão da Terra com sementes
à memória da vida
e das coisas que acontecem.


J. A. M. )
 

14.5.24

O Jogo

Pintura. J. A. M.

 

Do jogo vêm as mãos caçadoras
a seta incerta no coração da sorte
corpo tangente com um lado intocável
e por mais que os corpos se ousem
o desafio é sempre a veia inicial. O risco.
O acaso. A ilusória aparência de um encontro
sem testemunhas evidentes.


in, O Triângulo de Ouro -

( J. A. M. )

11.5.24

as cores dentro do fogo

Pintura. J. A. M.

 

Olho-te agora de longe. O teu rosto enaltece a luz que desce entre os muitos ramos das enormes árvores à-volta e ao mesmo tempo é uma luz que sai de dentro de ti. Com um sorriso leve reflexo de um  pássaro suave que vai voando. Entre ti e o momento, entre ti e a minha discreta doação ao que no fundo sinto seres, recordei agora esse momento fugaz entre o marulhar dos pequenos peixes na água do rio e os teus pés à beira descalços e acesos no meio da fogueira que agora me apetece imaginar.(...)


( J. A. M. )

25.4.24

Um barco desliza nas águas ao de leve sonoras

O meu Barco. A viagem. ( Pintura. J. A. M.)

 

de quem só olha.

Há em tudo uma paz impossível, e eu vejo o teu rosto e tu pareces não ser.
Olho-te de novo, e tu olhas-me assim:
tão perto e tão longe, no fundo de mim, que me deixas mais nu.
Eu sei:
és aquela que me chama do fundo das águas
que agora nos unem.
Eu sou aquele que apenas procura
e te entrega o silêncio inteiro das minhas duas mãos nas tuas.
Pois, no fim desta escuridão
somos sempre sozinhos.
A partir de agora, entre nós
não haverá mais segredos.


( Rio Preguiças. Br. ~ J. A. M. )
 
 
 

Poema em Saldo Nº25



uma data que regressa sempre
transparente à cabeça
um sino pendular nas cavernas do corpo
e então escrevê-lo é abrir as potências
do sangue, dos pés até à raiz
dos cabelos, deixar crescer
a vida circular dos dias
pelo silêncio poderoso
se fundamenta um olhar
(foi) um sonho, uma estátua invisível
dentro da memória
ordena-se o esquecimento
mantendo sempre a respiração do Mundo
entre muitos e muitos horizontes.


(J.A.M.)


12.4.24

Já não me lembro se era uma luz

Pintura. J. A. M.

 

Já não me lembro se era uma luz exterior ou
por dentro de mim, mas tudo estava incandescente
de uma forma natural e o Mundo
tinha um amplo sentido exato
em todas as coisas.
 
A certa altura, olhei-me de longe
e com o passar do tempo aprendi
a esquecer-me de mim.
 
No entanto, sou cada vez mais
esse vaso de luz
onde a luz me ensina.


( J. A. M.)
 
 

8.4.24

para alguém será

Pintura. J. A. M.

 

e tu que vieste da escuridão dos meus sonhos
entre o corpo e o sal adormecido
agora na violência deste silêncio apenas
desenhas um só nome: saudade.

Entre esses arquipélagos eis a sombra
da minha espera
enquanto as minhas âncoras acendem
as raízes do mar por onde indago
o céu & a terra
e este sentimento obscuro e fundo
que me entrelaça a ti.


( J. A. M.)




10.3.24

O Grande rio

Pintura. J. A. M.


Conheci uma mulher num país distante, era bela e serena e atravessava os dias, os meses, os anos com uma candura sábia de quem sabe que um dia também iria morrer, como tudo o que está vivo.
No jardim, seu lugar preferido, sentada num banco de madeira, cuja cor já não se sabia. Ocupava-se a olhar as flores à volta com um vagar e o inverso de uma aparente displicência especial, para mim inteiramente incógnita, até hoje. Às vezes olhava o horizonte, às vezes levantava um pouco o rosto para o céu e aqui, era à noite que se demorava mais.
Ao lado quase sempre um livro que a brisa desfolhava quando calhava. Ela parecia ler no ar as palavras que, entretanto, se evolavam das folhas. Parecia nunca usar as mãos e em vez dos braços eu imaginava asas que nunca vislumbrei.
Nunca lhe perguntei nada acerca das artes destes gestos tão silenciosos como as pedras que rodeavam os canteiros. Houve alturas em que me viu olhá-la de longe parecia estar sempre isolada, no entanto eu sentia uma levíssima sensação fresca e inquietante do lado agradável das novidades.
Retrocedia para as minhas tarefas, o pincel, o papel, os quadros, as cores do meu mundo.
De vez em quando, amávamo-nos através dos corpos e parcas palavras. Adivinhávamo-nos através de olhares demorados que continham tudo o que os nossos seres confirmavam.
 
Um dia fui ao jardim, onde era o seu lugar e vi-a adormecida. Chamei pelo seu nome, diminutivo que só ambos conhecíamos, toquei o seu rosto frio, mas apenas vi as flores, todas as flores debruçadas sobre si próprias exalando aromas mais intensos e os frutos maduros das poucas árvores a caírem um a um.
 

(J.A.M.)

 

23.2.24

A vida talvez seja atravessar pontes

Pintura. J. A. M.

A vida talvez seja atravessar pontes. Entretanto viver
os rios que vagueiam por dentro e por fora de nós.
Escurecer com as noites.
Iluminarmo-nos com os dias.
Por fora e por dentro de nós.


( J. A.M.)

20.2.24

Pintura ( 1978?) J. A. M.

enlouqueci devagar como as plantas
para as suas flores


( J. A. M.)

14.2.24

Muitos Sóis

Pintura.  J. A. M.

 

Que hei-de eu fazer senão sonhar um outro alfabeto, uma outra luz dentro das palavras soltando-se para fora?
Lembro-me da infância, dos íngremes ritmos que atravessavam o meu corpo das novidades a cada momento. É daí que lavro a sementeira que agora as mãos permitem.
Há sempre outras ocorrências, outras viagens, outros modos de sublevar as primeiras inocências.
Tudo acaba por coincidir na mesma aventura.
O rigor das diferenças são aparências soletradas só em si. Pois os círculos e as espirais têm sempre a sombra que nos transporta.
A luz, a derradeira luz, bate de lado, bate e bate, para que tudo pareça um simples sortilégio.
Mas não é, não.


( J.A.M.)

4.2.24

INTRODUÇÃO À TELEPATIA

Pintura. J. A. M.

 

Algures pertenço ao silêncio
enquanto suspendo da boca
o fio liso das montanhas, recortadas
junto às luas.
 
 
Mansas mulheres
devoram-me as esquinas às palavras
passeiam-se em línguas estrangeiras
estão atentas às suas imagens.
 
 
Hoje ocupo-me dos pequenos milagres
da linguagem. Fui esquimó europeu árabe
E em todos tive a mesma voraz atenção
a mesma língua muda transparente
em cada momento senti
o vaivém dos corações sem tempo.
 
 
Encontrei poetas pessoas sentadas
cheias, outras a dormirem cansadas
da eternidade.
Em cada um vi a idade nua, fechada
por uma obra silente nos olhos.
Em cada língua soube falar calado
e não houve alguém voltado de repente
olhando-me atónito
como se estivéssemos colocados fora
do lugar.
 
 
Por isso, toco o silêncio. Muitas vezes.
Queimo-me nas vertigens dos gestos falados
querendo prolongar este talento tão ardente
e tão natural
a espera fulminada pelos dons das mulheres
intuitivas
pois é delas esta arte adivinhatória, este estilo
totalmente original
abandonando os campos absurdos da mente.
 
 
As paisagens iniciais atam e desatam-me
o corpo. Os silêncios vivem de um veneno puro
no éter, desdobram a luz das estrelas
por onde outros códigos cantam os corpos
comunicantes
em claros encontros fora das palavras.



( in, O Triângulo de Ouro. J. A. M.)

 

 

 

 

 

26.1.24

Visitas

Life in the Universe. J. A. M.

 

As obscuridades da noite ampliam o espaço do coração pelo silêncio instalado.
Outros ritmos de tambores celestes invadem os rios interiores que transbordam.
Barcos incógnitos e luminosos aproximam-se.
São mensagens de outros mundos que nossos mundos são.
Já não ouso decifrar. Porque pensar é estancar a corrente, germinar barragens.
Prefiro abrir as asas metafóricas e de peito aberto e livre acolher as imagens vindouras que devagar me designam e me fazem ser o que, afinal já era.

Confesso, sou sempre pouco para o que digo.

 


( J. A. M. )

 

21.1.24

no comments

 (3ª parte)

Trabalho: J. A. M.

Coisas comuns ( 2ª parte)



E os círculos de expansão fecham-se. E ao fecharem-se circulam, circulam sem as asas das espirais.
Eis o reflexo da vontade dos deuses que as geraram. Deuses inclassificáveis, nem bons nem maus. 
A vassalagem erguida pelas igrejas , acompanha tais ditames. Os seres humanos androides alimentam as grandes oficinas da energia, retida somente para alguns.
Como desatar os nós desta noite, sabendo que esta é pessoal e privativa e cada um de nós se agarra a ela como se fosse o seu verdadeiro "eu"?

Novos tempos estão vindo. Os universos não dormem.
Mais próximo de nós, o sol estende os seus braços de luz cada vez mais. As suas mãos tocam-nos e algo em nós diluído no trânsito dos dias, transforma-nos.
Ainda remediavelmente inconscientes copiamos a arte dos girassóis.


( J. A. M. )

19.1.24

Coisas Comuns

Pintura: Sinais de um novo Renascimento. J.A.M.

 (1ª Parte)

uma manada de egos invadiu o lugar. Permanecem. É um espaço amplo recheado de paredes, vozes sem eco, corpos distanciados das suas almas, corpos desalmados pelas suas inocências.
Há sempre alguém que levanta a voz, convicto nos quiméricos poderes dos sons e dos seus dons demiurgos e os outros, sem rumo por dentro, escutam-nos (preenchidos momentaneamente) e seguem-nos ampliando os lugares invadidos de egos.
O maior "pecado", a ignorância.


( J. A. M.)

14.1.24

Cantador de Palavras

Pintura. J. A. M. 


 

Um corpo paciente atravessa a transformação
dos dias, as oscilações breves do tempo.
(Não é um corpo inocente, pois tem em si
a nudez das árvores nas paisagens
os lábios nos frutos suspensos da sede)
 
 
E quando desse labor apaixonado
surge uma sombra transparente
será um poema será
uma lentíssima pausa na luz
um novo aroma evaporado da pele
para os olhos de quem sabe morrer
à espera de si.
 
 
Entre os vagarosos crepúsculos das palavras
e o primeiro sopro da leitura
há uma cintura de astros inacabados
percursos de sonhos a dormirem no desejo.
 

É para estas fontes que regresso ao fim das noites
espalhando os sonhos mais raros e sozinhos
sobre a esquecida língua do silêncio.


( J. A. M. )
 
 
 
 
 
 

12.1.24

~ folha de um diário perdido ~

 

Sona Jobarteh está a entrar pelos lados onde as portas são mais negras. Para que as estrelas resplandeçam mais, nesta infindável noite.
Há na vocação das vozes um halo universal redondo é este planeta onde agora vivemos.
 
Como no mar: altas ondas outras nem tanto, a 7ª onda é sempre ouro nos sons alongados e por tal sortilégio algo em nós se expande mais.
Tenho agora os pés nus onde elas esmorecem e eu cresço.
Falo do amor. Falo sempre do amor.
 
Entretanto no mar alto e no seu fundo, tudo parece sereno, adormecido, indiferente.
Mergulhei por aqui em noites de imprudentes êxtases. Cheguei a morrer: de encantamento.
Regressei sempre 1 outro que demorava a reconhecer. Enquanto peixes translúcidos me trespassavam. Enquanto o sal da água resplandecia como minúsculos cometas afogados pelo brilho. E tudo era a mesma matéria, tudo estava sempre ligado a uma luz que de longe clamava.
Os sons, as raízes dos sons de Sona Jobarteh, aproximam tal mistério.
É uma outra colheita para a alma, outra voz incógnita cujos sons chegam a ter cores.
Pleno de tudo, regresso á minha cabana onde acendo uma vela. Vivo numa ilha, desconhecida pelos mapas.
E tudo se torna claro como um anel de sol virado do avesso. Dentro e fora tudo é igual.

 
 

( J. A. M. – Gâmbia-2023)


Sona Jobarteh – Jarabi:

https://youtu.be/oToZfPGMMBY?si=F3abTRDcUiPemF3M


7.1.24

a noite transfigura o olhar

Pintura. A NOITE. J. A. M. ( 1980)

 

Vê-se como a noite transfigura
o olhar
e tudo à volta enaltece um outro
mundo
onde os nossos olhos se inclinam
para dentro
desenhando as formas que chegam
com uma luz alheia, uma luz
cheia de novos horizontes
onde somos os mesmos sendo outros.


( J. A. M.)

26.12.23

A MARCA DE VÊNUS

 "Sr. da Pedra", V. N. Gaia-Porto. Foto J.A.M.

 

Entrego à noite o meu corpo, só.
Entre vários impossíveis deus espera
a morte global, estátuas em silêncio
os olhos
entre dois cometas
atingidos em plena pose.
 
Falo em deus como posso dizer muros e
muros transparentes ou o interior das casas
por detrás das cortinas.
Belas mulheres varrendo o ar labiríntico
com a nudez das coxas aplainadas no desejo.
Pedaços da beleza
fantasias madrugadoras do futuro
vindo até nós.
 
Entre nós há um duelo cego
tocado por enormes encantos
e grandiosos silêncios.
É soberbo e dói cantar o diário infortúnio
as distâncias entre as pessoas
O fundo incompleto onde se morre
tão devagar.
 
Também a morte reclama a sua beleza
e nessa doação é preciso não sermos imaginativos
rente à superfície das coisas
estarmos próximos às árvores mutantes
nas estações, levantadas do chão
e libertas pelas suas próprias aceitações
de serem folhas, frutos e sombra
enquanto a demência do espírito ousa
a delicadeza de um pretexto
para a meditação.
                              (Enquanto o corpo está só
as florestas evoluem os símbolos, inscritos
dedo a dedo na pele dos vivos
adormecidos mortos).
 
Mas, não há maior ciência que a dúvida.
Entre tantas imagens já pensei ser grande
mergulhado em mim o talismã do poder
nos olhos, na voz, o timbre preciso
para as montanhas se moverem
em direção ao poema.
 
Como dizer por um toque simples
as raízes da criação submersas em ondas
passageiras em mim e logo são outros
a beberem essa feroz concepção
nas veias interiores abertas
à desconhecida inteligência, finíssima matéria
implacável nos seus encontros.
 
A esse deus abandonado aos limites dos homens
peço o Silêncio a dívida que dorme
sobre a minha carne deslumbrada libertina
pois aí, também eu sou muitos
e sofro a divisão das idades baralhadas
o lento hipnotismo destes momentos
em que nenhuma mão se encontra arrumada
no seu próprio ofício de ser
só uma mão. De um corpo acordado vivo
na simples quietude da beleza.
 
 
 
 
 
( J. A. M. - in, Triângulo de Ouro)
 
 
 
 
 
 
 
 

22.12.23

" to lean out of the boat. To be human." ( Seth Godin)

Pintura. J. A. M.

 

VOZES COMUNICANTES


Às pessoas nómadas nos corpos e nas almas
um beijo indelével no rosto ausente
intervalo onde tocamos juntos
a íntima unidade no coração das coisas.
 
Sobre as infindáveis ciências dos homens
pousamos a luz urgente de outros olhos
desce sobre nós
a lucidez do Universo vivo.



J. A. M. ~ in, " O Triângulo de Ouro" (1988)
 
 

10.12.23

Sinais

Farol diurno ( pintura) . J. A. M.

 

Colher escolher à tona o desejo mais fechado

entrega-lo aos olhos e dizer: como acontecesse o coração

no seu exato pensamento. Onde felizmente

há música na geometria dos astros

e um início de ouro a cada momento.


(J. A. M.)

 

5.12.23

Há coisas do diabo. Já fui ao Paraíso.


Escultura-Máscara. J. A. M.

 

Há coisas do diabo. Já fui ao paraíso.
E voltei.
Estava já quase acordado no meu quarto do Hotel Europa, quando a Ana e a Joyce abriram a porta em leque cheias de sorrisos floridos e me convidaram para dar um passeio pelas franjas de Gaibu. Lá me levantei um tanto ou quanto aturdido pelas caipirinhas da noitada anterior, mas depois de beber o coco fresco que me atiraram de chofre fiquei logo fino, vesti a t-shirt e os calções de sempre e lá fomos, que nem 1 trio harmonia pelo dia adiante.
Passámos pelas ruínas do Forte São Francisco Xavier, eram pedras amontoadas por ali pelas leis do acaso e com alguma parcimónia sobrava a placa, livrei-me das alpercatas (1) na linda praia de Calhetas, onde vi ondas debruçadas sobre a própria espuma fresca nos meus pés, depois de serem verde-esmeralda e azul-turquesa, e também vi uma foto do jovem Eusébio no bar lá do sítio, ao lado de N ilustres que por ali tinham po(u)sado algures, ao longo dos seus destinos.
Depois continuámos a caminhar por entre árvores (2), plantas e flores de muitas cores e aromas vários, até que a incerta altura num morro inesperado e cheio de um céu azulmuitoazul, vi uma tabuleta tosca de madeira com a palavra: “PARAÍSO”.
As minhas companheiras apanharam o meu ar aparvalhado e eu apanhei-as a sorrirem apenas cúmplices.
 
O que havia a dizer?
 
Lá descemos entretidos com os pés de cada um, a saltitarem de pedra em pedra, até desembocarmos numa espécie de praia com a água muito transparente e a areia prateada pelo pôr-do-sol que se diluía pelas águas até ao esquecimento.
Sentámo-nos a olhar e a escutar o mundo à volta através daquele ponto de vista, dentro do ponto de vista de cada um e os três juntos com as 6 vistas desarmadas, despidas, deliradas.
Já não sei, e pouco me importa, o tempo (o tempo?...) que poisámos ali, a respirar aquele lugar tão belo e simples irrealmente em tudo. Lembro-me vagamente que as palavras eram coisas a mais e a ninguém lhe passou pela cabeça falar de tal assunto.
 
Quando regressámos a Gaibu, numa camioneta que ainda circulava, já lá estava instalada uma noite claramente aberta à nossa festa.
 
 
 

(1) Sandálias de couro.
(2) Manacás, mulungas, ipês, com as suas flores de ouro, algumas das muitas árvores ainda existentes e caraterísticas da Mata Atlântica no local.
 

 
(Gaibu. Estado de Pernambuco. Brasil)

 ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

in, Livro de Contos : O OURO BREVE DOS DIAS

J. A. M.

 

26.11.23

o AVISO

Desenho. J. A. M.

 

Estava eu bem sossegado, afundado no meu cadeirão anti-stress e profundamente enlevado nos meus íntimos sonhos de ser alguém na vida um dia talvez me calhe a vez, quando a minha vizinha me acordou para fora deste delicioso enlevo criativo, com um frenético toque de campaiiiinha que, enfim.

mais umas frases adiante,

fiquei desarmado com uma revista nas mãos que se tinha perdido por entre as caixas de correio. A Sr-ª apresentou-se em cima de uns sapatos de Salto alto muito bem aprumada no geral, até tem um peito jeitoso só hoje é que reparei, há males que vêm por bem, pensei, mas logo me arrependi de tais lucubrações claramente infrutíferas no momento, por uma decisão inconscientemente pessoal, confesso, embora ainda hoje desconheça o que levou a tal.

Bom, agradeci o favor, que obviamente não foi favor nenhum, mas um grandessíssimo "corte" e por hábito, educação ou qualquer outra razão de que já não me recordo, abri a dita revista, que não tinha muitas folhas, mas parecia Grande devido à generosa espessura das folhas, e, e, caí logo na pág. 16. O 16? Como sou um adepto entre o mui fervoroso e o semi-fanático das numerologias, ninguém é perfeito, peguei no telemóvel para fazer as contas e 1+6=7, Zás! ali estava o tal 7, o número mágico por excelência nesta civilização onde deus me faz andar ou penar e vai daí pus-me logo em pulgas a pensar onde poderia encontrar a tal magia.
Então comecei pelo título da pág.: "Desporto, saúde & bem-estar". Saltei logo para o "bem-estar", bem aberto a tal assunto e a prováveis soluções, pois quem anda realmente bem no meio disto tudo?  mas no decorrer das palavras fiquei simultaneamente intrigado, pois havia Muita matéria junta que transbordava um-não-sei-quê de excesso para encher as medidas de quem tem a intenção sub-reptícia de convencer alguém de algo que só tem haver consigo próprio, no intuito para mim claríssimo de um lucro sorrateiro qualquer. Mas pronto.

Estou habituado a estas circunstâncias e já não me ponho com guerras na minha  cabeça, bastam-me as outras. O lucro será deles com certeza é sempre, mas a cabeça é minha, s.f.f., pelo menos por enquanto como isto anda só Deus sabe, algures nos E.U.A.  ouvi dizer que há tecnologias de interferências cerebrais que não lembram ao diabo.

Vim por ali abaixo, saltei as frases supérfluas que surgiam, mas o pior era o tipo de letra emoldurando uma horripilante mancha gráfica, até que me deparei com a palavra em negrito "AVISO". E aí, estanquei definitivamente, com todas as minhas forças possíveis e impossíveis quase, fiz um momento de inclinação corporal a obrigar-me a uma maior concentração no assunto e pus-me a ler o dito Aviso para poder continuar a escrever este artigo de momento, sem qualquer futuro à vista desarmada, pois a vida de um cidadão neste país é um eterno desarmamento de tudo o que é Vida mesmo.

A coisa começou a complicar-se, tudo aquilo eram "artigos" e "sub-artigos" , os "dispostos" os "decretos-lei" e as "deliberações" com datas (em letras menores), mais os "capítulos" e os "subcapítulos",,, Ó minha  Santa Maria Madalena, comecei a ficar farto, farto, enfartado de todo, pois considero-me uma pessoa minimamente culta, minimamente inteligente, minimamente capaz de ler e entender um mero artigo de uma Revista de Informação Camarária, mas efetivamente não estava a entender patavina daquilo.

Adiante.

Trocado por miúdos e muito bem espremido o fruto em causa, quanto à qualidade estamos falados, mas tratava-se mais precisamente de quê?
De um “AVISO” para avisar o povo destas bandas de que foram avisados de que há um prazo de 30 dias "úteis" (ainda estou para descortinar o que é isso de dias "inúteis”) para se realizar uma "discussão pública" acerca de mais uma alteração ao não-sei-quê, que logicamente tem o seu quê de mudança relevante para alguém e o pessoal até tem de ser informado segundo a lei em vigor e essas lérias ditas democráticas, deles.
Agora a questão aqui complicou-se ainda mais, porque na parte final diziam ao povo que 1º tinham de ir a uma determinada morada para consultarem o tal assunto fundeado no meu enigmático número 7, e depois quem quisesse até podia enviar, através de cartas registadas, reclamações ou sugestões, nas " horas normais de expediente ". Só estas palavras do final da frase, atiraram-me abruptamente para profundíssimos momentos de reflexão pessoal acerca deste lado da questão: o que são horas "normais" para eles? Onde param as horas "anormais", que nunca as vislumbrei na minha vida? E qual será o expediente lá do sítio? E no expediente lá do sítio estará lá alguém? ou será a habitual espera-desespera e o habitual culto matricial português do “como-e-cala-te” e hoje em dia o telemóvel é que as paga, para o gáudio dos habituais , está mesmo tudo ligado.

Mas
o que mais me deixou desanimado de todo, confrangedoramente deprimido mesmo comigo próprio e com o mundo e até ouso dizer, com toda a Humanidade que à priori nem era chamada para o caso, foi o facto de perceber - creio eu - que numa declaração tipo preto no branco acerca de uma DISCUSSÃO PÚBLICA, o pessoal era afinal convidado, nestes moldes enviesadamente anacrónicos e absurdamente mirabolantes a ENVIAR CARTAS, se quisesse. (verdade seja dita, não vislumbrei neste textozinho nenhuma insinuação mesmo velada, acerca de uma possível coima ao adotar-se uma eventual atitude de abstenção ou de ausência atempada das ditas cartas no destinatário. Apesar de – a meu ver – a tática dos Medos ser a base funcional e disfuncional Disto Tudo, que designam,ipsis verbis, como sociedades democráticas.)
 
E. Pronto.
Continuo a não entender a ponta de um corno acerca do modo de pensar e sentir e agir dos Senhores que nos governam legitimamente eleitos & tudo.

e para ver se alguém me poderá ajudar neste momento francamente muito difícil da minha vida, vou surripiar uma garrafa de vinho da parte mais nobre da minha pindérica garrafeirazinha encostada à casota do meu "eGo" * e vou ter com a vizinha que me arrancou dos meus criativos enlevos e vou tocar à campainha, muitíssimo ao de leve só um toquezinho de quem está ali desamparado como um toco de vela  moribundo fustigado pela noite, apenas com um pretexto entre as duas mãos e um sorriso naturalmente aparvalhado de quem espreita uma suave e doce vingançazinha.


* trata-se do meu cão.



( J.A.M. texto iniciado em 1993)